Olaria Atlético Clube, campo de São Cristovão, Quinta da Boa Vista. A cada ano, durante a ditadura civil-militar, eu percorria a cidade para as manifestações do 1º de Maio. Era meu compromisso como sindicalista (anos 80) e interessado em política. Os sindicatos, mesmo asfixiados pela repressão, iam às ruas para lembrar os Mártires de Chicago e atualizar as reivindicações trabalhistas. Os partidos de esquerda, clandestinos, estavam presentes, reiterando seu compromisso histórico com os trabalhadores.

Lembro especialmente do 1º de maio de 1981. No dia anterior, militares terroristas tentaram explodir três bombas no Riocentro, onde se realizava um show pelo Dia Internacional dos Trabalhadores. O plano era atribuir o atentado à esquerda, bloqueando o tímido processo de abertura do regime. Uma das bombas, entretanto, explodiu dentro do carro que levava os criminosos fardados, matando um sargento e ferindo um capitão, ambos do Doi-Codi, sinistro centro operacional do terrorismo de Estado.

A ditadura logo montou uma farsa, alegando que a bomba fora arremessada por alguém para dentro do carro. João Saldanha, presente no ato do 1º de Maio, no campo de São Cristovão, ironizou. Ainda sou capaz de ouvi-lo, com a veemência gaúcha. “Devia ser, então, um craque do basquete, para acertar a janela de um Puma”. Lembremos que o Puma era carro de pequeno porte, padrão Karmann- Ghia. Grande João sem Medo!

Na origem, o 1º de maio está ligado às lutas operárias no século XIX. Era época de utilização maciça de trabalho infantil nas minas e fábricas, de jornadas laborais que chegavam a 10, às vezes 12, horas diárias, de condições fabris insalubres, de miséria e repressão. Os trabalhadores de Chicago lutavam, em 1886, por uma jornada de 8 horas e foram violentamente reprimidos. Na praça Haymarket deram-se os eventos que assinaram a certidão de nascimento do 1º de Maio. Manchada de sangue operário.

Onde anda o 1º de Maio? Ainda há manifestações, de calibre variado, em muitos países. No Brasil, há muito que está desfigurado. Vulgarizado. Transformado de jornada de memória e luta em festividade invertebrada, com sorteios e discursos chapa branca, sem mobilização popular. Apenas um ritual no metaverso, de imagens antigas embalsamadas. Aqui e ali pequenos grupos se reúnem e conservam o espírito original, mas são, infelizmente, pouco representativos. A grande massa permanece alheia.

Terá perdido sentido o Dia Internacional dos Trabalhadores? Não há mais motivos para fortalecer a consciência de classe através de grandes manifestações? Inexistem respostas simples. A lógica do capital mudou a máscara, mas permanece a mesma. A exploração do trabalho é diferente da que existia no século XIX e boa parte do século XX, mas continua sendo a coluna vertebral do capitalismo. Chamar trabalhadores de “colaboradores” não altera o caráter da mais-valia. Crescem a precarização do trabalho e o desemprego estrutural. Os 10% mais ricos do planeta concentram 52% de toda a renda. A sociedade pós-industrial, fincada em novas tecnologias poupadoras de mão-de-obra, engorda o cordão dos desempregados. As chamadas Big Techs, por exemplo, que abastecem de produtividade os principais polos dinâmicos de acumulação de capital, demitiram quase 300 mil trabalhadores entre 2020 e 2023.

A adornar o circo de horrores, a Guerra Fria 2.0. Na esteira do confronto EUA x China e dos acontecimentos na Ucrânia, o gasto militar global cresceu 3,7% em 2022, chegando a US$ 2,24 trilhões (maior do que o PIB brasileiro). Os Estados Unidos respondem por quase 40% da dinheirama. Governos fascistas germinam na esteira de nacionalismos autoritários. Aumentam os fluxos migratórios, agrava-se a destruição ambiental.

Há razões objetivas para uma reação organizada dos trabalhadores de todo o mundo. No entanto, ao contrário do que acontecia quando a produção industrial clássica era hegemônica, estão dispersos, muitas vezes em regime de trabalho doméstico. A precarização não favorece ações coletivas, não há um local comum de trabalho. Por outro lado, a crise na esquerda anticapitalista dificulta a elaboração de uma teoria que oriente e metabolize a ação política num mundo extremamente complexo e potencialmente letal.

Por tudo o que penso e sinto, sou parte desta história. Das vitórias e derrotas. Das indagações, das convergências e divergências, da fraternidade na luta. Em nome deste pertencimento, que está vivo, homenageio todos os trabalhadores e seus aliados que lutam, lutaram e continuarão lutando por sociedades que emancipem o Homem da servidão capitalista. A História, sempre caprichosa, continua.

Abraço. E coragem.