A imagem não parava quieta. Era um tal de ajusta horizontal pra cá, corrige vertical pra lá. Com essa ginástica involuntária e em horário “de adulto”, o pessoal grudava o olho na televisão para assistir Cidade nua, seriado policial ambientado em New York. O preto e branco dos anos 50 nos levava a um ambiente noir, Hopalong Cassidy de chapelão dando lugar ao detetive Adam Flint e sua arma de cano curto. Um salto e tanto sobre o cardápio, até ali exclusivo, da dupla William Hanna e Joseph Barbera.

Não foi no Central Park, mas no Campo de Santana, que alguém capturou um vira-lata e, por falha auditiva, batizou-o de Flinck achando que homenageava o detetive nova-iorquino. Com esse equívoco de origem o bicho chegou à minha infância. Diziam que era mistura rara de bassê com pequinês, salsicha de um, pelo do outro.

Nossa relação foi tensa. Por algum desvio da psique canina, o animal não me apreciava. E não fazia o menor esforço para esconder. Olhava-me com ar de você não perde por esperar, rosnava, mostrava dentes mal-intencionados. Oportunista, abanava o rabo quando lhe mostrava a coleira de passear. Eu catava suas pulgas fugitivas de circos imaginários, dava-lhe de comer, mas ele não se comovia. Uma rejeição que me introduziu às injustiças e aos mistérios da vida fora dos tubos de imagem.

Foi o Grande morrer para selar o destino do Flinck. Sem condições de levá-lo para o apartamento onde fomos morar, acabou desovado num lugar qualquer e abandonado. Maldade sufocada pela dor da imensa perda recém acontecida. Não deixou saudade e poderia, como efeito colateral, ter-me levado para o mundo herético dos odiadores de cães. Não foi o que aconteceu, mas ando com vontade de repensar a trégua com o mundo dos canídeos.

Durante a pandemia, ao lado da insegurança e do medo, ganhamos um pequeno e valioso presente sonoro. Com menos trânsito, o ar ficou mais limpo e as aves acusaram a novidade. As árvores da minha rua transformaram-se em anfiteatros canoros. Não sou o Tom Jobim, tenho proverbial dificuldade para identificar passarinhos. Eles não se incomodaram com a ignorância e capricharam em solos, duos, trios, grupos de câmera. Um assombro! Depois de um tempo, alguns até ousavam sair dos galhos seguros e pousavam nos parapeitos das janelas. A natureza, tão vilipendiada pela arrogância humana, fazia uma visita, mostrando, pelo contraste da beleza, nossa estupidez predatória.

Não sabíamos, mas, junto com a passarada, aumentava o número de cachorros nos apartamentos. O isolamento forçado levou muita gente a buscar companhia no mundo animal. O resultado é que hoje o número de bichos de estimação nos lares brasileiros é maior do que o número de crianças. A solidão, fenômeno multifatorial, exibe seu caráter angustiante por uma estatística: uma em cada quatro pessoas não se sente próxima de ninguém. Daí, tome de abrigar bichos de todo tipo. Uma vizinha coleciona sete – isso mesmo, sete! – cachorras, sempre confinadas para preencher o vazio existencial da dona. Está mais fácil a humana aprender a latir do que as cachorrinhas aprenderem o beabá.

Pelo que se vê nas ruas, há clara preferência por raças pigmeias, dessas que parecem estreptococos peludos, agitados, sempre à beira de um ataque de nervos. Os donos perderam a noção de regras de convivência em espaços públicos. Não se incomodam quando os animais latem sem controle. Sons dissonantes em marcha-a-Ré maior. Nos apartamentos, a cachorrada faz a festa, soltando estridências a qualquer hora e pelos motivos mais vagabundos. As sinfonias aladas recolhem-se, abafadas pelas matilhas desgovernadas e seus donos indiferentes.

Podem achar que é ranzinzice provocada pelo trauma Flinck. Não nego o resíduo de amargura, mas me dou bem com labradores, golden retrievers, beagles, boxers, buldogues ingleses e outras raças que prezam o silêncio e se manifestam sem abrir as portas do inferno sonoro. Quanto aos donos e as neuroses que descarregam nos quadrúpedes, cito um filósofo conservador: a verdade é que o Brasil é um país em que a vergonha na cara se tornou um ativo raríssimo.

Au, au, procês.

Abraço. E coragem.