Hoje memoramos o Holocausto Judaico. Hoje memoramos a memoria de 6 milhões de almas que se foram, 1.5 milhões de crianças. Quem não conhece história e não leu sobre o holocausto e não falou com testemunhas que vivenciaram guetos e campos de concentração não podem imaginar a brutalidade animalesca do nazismo. Não era loucura, não era desumana, a ideologia nazista e a solução final foram resultados de um processo de pensar do pior que o ser humano pode realizar. Mas, que esteja bem claro, não foi loucura de um homem ou de uma nação. A História Humana está cheia de Holocaustos. Circassiano, o primeiro holocausto da era moderna, pelos russos, no qual 90% do povo foi aniquilado e expulso de seu território; Arménio, pelos turcos, no qual 1.5 milhões foram assassinados; Ruanda, 1 milhão em 3 meses; Camboja, 2 milhões. Estes são só alguns exemplos da crueldade humana, não dá loucura. Se fosse loucura, não teríamos o que fazer. Mas, maldade e odio, temos que seguir as palavras de Mandela – “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar”.

Hoje, em Israel e nas diásporas nos 4 cantos do mundo, o povo judeu memoriza, o que foi o maior e mais planejado cientificamente holocausto. Em uma semana mais se comemora a criação do Estado de Israel. O movimento sionista messiânico, pregando a volta a origem sempre existiu, desde o exilio nos anos 70 D.C. “Beshana habaa beYerushalaim” (no ano que vem em Jerusalém) é a reza diária dos judeus, voltados para Jerusalém. Mas, o movimento sionista político, movimento de libertação do povo judeu, como movimento de ação, surge somente nos finais do sec. XIX.  Muito antes do Holocausto.

Após o Holocausto, o povo judeu ansiava por um Lar seguro, um lugar no qual poderia sobreviver sem depender de outros, local que surgisse das origens do povo judeu, mas adaptado a nova era. Assim era o movimento sionista socialista, dos kibutzim e moshavim, da igualdade entre homens e mulheres. Um novo judeu para o novo Estado. Judeu laico, liberal, enraizado em sua história, seu calendário, sua cultura e língua renovada após 2000 anos, ação única em toda história da humanidade.

Mas, algo deu errado. Algo que a teoria não era compatível com a prática. A nova velha Eretz, Terra, não era uma terra sem povo para um povo sem terra. Era uma terra compartilhada com outros, que também queriam a sua libertação, seja através da Grande Síria ou da Palestina. O Mundo árabe nos hostilizava, e tínhamos que nos defender. O mundo árabe manipulou ao povo palestino, para obter seus objetivos políticos. O resto é história, que conhecemos. O conflito de movimentos de libertação de dois povos – judeu e palestino.

A teoria não era compatível com a prática também no plano interno do povo judeu. O Novo judeu, ocidental, laico, liberal, socialista impôs a outros setores do povo, o que hoje chamamos de “tribos”, o novo modelo de judeu. Mas, eles judeus orientais refugiados dos países árabes e judeus religiosos ortodoxos e haredim (ultra-ortodoxos) não se encaixavam neste “Novo Judeu”. O resto é história, que conhecemos. O conflito étnico entre judeus ashkenazim (ocidentais) e mizrachim (orientais) e o conflito religioso entre judeus laicos-liberais e judeus ortodoxos e haredim.

Os conflitos internos, que definem a identidade nacional-religiosa-étnica de Israel, foi superado, pela união para enfrentar o conflito externo. Os conflitos internos estavam encobertos pelo conflito externo. Mas, estes foram se acentuando, ganhando energias, como uma panela de pressão prestes a explodir. E chegou o momento – explodiu!!!

Israel vivenciou várias crises em sua curta vida. Crise de sobrevivência nas guerras da Independência e de Yom Kipur. Guerras em que sua existência foi ameaçada. Mas, nunca Israel passou uma crise como a atual. Uma crise de identidade.

Israel não possui uma constituição, mas em sua fundação, foi assinada a Carta da Independência, que se tornou a base das leis do país. Israel um país democrático e judaico.  Durante 75 anos vivemos uma tensão entre estas duas identidades. Até quanto elas podem conviver? Como pode ser democrático se existem leis que favorecem aos judeus e descriminam outras populações com diferentes etnias, religiões e nacionalidade? Como pode ser judia e o que significa ser judia? Quem definirá esta identidade judaica?

O sionismo humanista, liberal, democrático dominou a identidade israelense desde a criação do movimento sionista político até os anos de 1967. Quase cem anos. Os kibutzim e moshavim com ideologia laica e socialista, os partidos políticos de centro-esquerda e esquerda dominavam a Knesset com maioria absoluta.

Até a Guerra dos 6 dias, Israel era o David lutando a Goliath. 100 milhões de árabes nas fronteiras contra o pequeno Estado com alguns milhões. Era uma minoria que via ao povo palestino e a Nakba como um fator a ser considerado. O Pais e o povo estavam em luta pela sobrevivência. Não havia dilema em relação ao povo palestino e nem em relação ao dilema Judaico-Democrático.

A Guerra dos 6 dias, a conquista da Cisjordânia, Gaza, Golan e Sinai transformaram o Pais. O movimento sionista messiânico e revisionista pregavam a ordem religiosa-nacionalista de anexação dos territórios “liberados” de acordo com eles. O partido do Avoda (esquerda) cedeu as pressões e começou o processo de colonização judaica, principalmente na Cisjordânia, que era tida como território da Grande Israel, território bíblico. Golan e Sinai eram vistos mais sob o aspecto de segurança.

A partir deste momento Israel começa a perguntar-se sobre sua identidade, dividindo o país em duas correntes – a democrática e a judaica. A esquerda assumiu a democracia e a direita a judaica. Na ocasião Yeshaiahu Leiboviwitz declarou “A tomada de Gaza e da Cisjordânia foi uma calamidade, não um milagre. Devido a isso, o chamado estado judeu se tornaria um regime colonial e as FDI um exército de ocupação, corrupto, degenerado e fraco, prendendo ou deportando os árabes que resistiam e alistando traidores entre os outros enquanto canalizava os melhores jovens israelenses para o polícia secreta.” Zvi Lam, o maior filosofo da educação em Israel, escreveu um livro “educação para a guerra”, prevendo todo o processo de socialização para a guerra e para um pais de domínio a outro povo, justificando isso através de desumanização do inimigo (todo palestino é um terrorista) e da postura de vitima perseguida por antissemitas e antissionistas, sendo o holocausto o fator primordial nesta “lavagem cerebral” da consciência coletiva. Zvi Lam, definiu que se o processo de socialização da consciência coletiva e do sistema escolar suceder, principalmente o do sistema escolar religioso, teremos em 4 décadas um processo ditatorial de direita messiânica no Pais. A revolução da identidade judaica e sionista do Pais.

Este processo iniciou-se em 1967, mas somente a partir de 1977, com a queda do governo de esquerda, causado pela crise da Guerra de Yom Kipur e pela corrupção, é que ela passou a ser parte da estratégia governamental. O novo governo formando pelo partido Liberal (anti socialista, capitalista) unido ao partido Herut (sionismo revisionista, expansionista-colonizador) e os partidos religiosos, Mafdal (sionismo messiânico) e Agudat Israel (anti-sionista a favor da Halacha , leis judaicas ortodoxas) deu inicio a revolução da identidade judaica israelense.

A politica de “tribalizar” o pais, dividir para governar foi a estratégia central do governo do Likud , durante 40 anos de poder. Beguin em seu famoso discurso dos “Tchachtchahim” (termino pejorativo sobre a população oriental, usada por um propagandista da esquerda) e o discurso “das piscinas dos kibutzim” (acusando os membros dos kibutzim de se aproveitarem das populações orientais enquanto passavam o tempo em suas piscinas) deu inicio a manipulação politica do problema social entre a classe dominante de  ashkenazim (judeus ocidentais) em relação a classe desprivilegiada de sfaradim-mizrachim (judeus orientais de países árabes). O problema existia, mas durante 40 anos de poder o Likud e a direita não fizeram nada para solucioná-lo, usando-o como arma política, sempre culpado o governo de esquerda pela segregação.

A outra divisão tribal foi entre religiosos ortodoxos e ultraortodoxos e a população laica, que são a maioria. As Provocações podem ser exemplificadas, quando em vésperas de eleições Bibi Nataniahu em encontro com o Rabino Ovadia Yossef, líder do partido religioso de judeus orientais, declara, sem perceber que estava sendo gravado, de que a esquerda esqueceu o que é ser judeu, pedindo a ele o apoio eleitoral.

E a última divisão, logicamente, é contra a população árabe-palestina. De novo exemplificando, nas eleições de 2015, Bibi faz um apelo a população de votar pois “os árabes estão galopando as urnas”.

Em 2012 foi criado o Forum Kohelet de extrema direita por judeus americanos, com o objetivo de transformar a identidade judaica e sionista do País, influenciando e patrocinando a direita e extrema direita em Israel.  O primeiro passo foi a Lei do Estado-Nação definindo que o estado de Israel é o estado do povo judeu, segregando outras etnias, nacionalidades e religiões (como os palestinos cidadãos israelenses, drusos, cristãos, muçulmanos etc.).

O segundo passo estamos enfrentando agora. A revolução do sistema judiciaria, dando total controle do governo sobre esta. Através da reorganização da Comissão de eleição de juízes, com maioria de representantes do governo; a lei da Superação (lei que permitirá a 61 membros do Parlamento cancelar qualquer decisão do Supremo Tribunal); Lei da Incapacitação (o Supremo Tribunal não poderá interferir e somente por motivos de saúde o primeiro ministro poderá ser afastado); Lei das Razões de razoabilidade (o tribunal não pode usar os fundamentos da razoabilidade contra decisões tomadas por funcionários eleitos, apenas em decisões tomadas por funcionários); Lei Deri 2 (permitindo ao líder do partido Shas retornar ao governo, apesar de que para conseguir um acordo com a justiça declarou que n’ao voltaria a vida politica).

Mas, isto é só o topo do Iceberg. Entrementes já foram aprovadas 141 leis. Entre elas alei de kashrut, do kotel, leis anti-feministas, leis homofóbicas. A caminho estão leis para fechar o canal nacional de radio e TV; interferir no sistema educacional proibindo ONGs de DDHH, Género, feministas e de esquerda de darem oficinas e palestras nas escolas; lei contra o transporte público no sábado; leis contra o guiur alternativo das correntes ortodoxa liberal, conservativa e reforma.

O ministros das finanças Bezalel Smotrich declarou que o povo palestino não existe e que Hawara deveria ser destruída e queimada (aldeia na qual foi realizada pogrom por 100 colonos, depois que terroristas mataram 3 judeus) e que na plataforma politica declara a expulsão dos palestinos por livre vontade. E, o Ministro de Segurança Nacional Bem Gvir exigiu uma polícia particular de 1800 policiais. O ministro tem como ideólogo ao Rabino Cahana e a Goldstein (terrorista judeu que assassinou mais de 30 muçulmanos em uma mesquita em Hebron) e era parte do grupo de Igal Amir, assassino do 1º ministro Rabin.

O judeu da diáspora tem que entender que o processo atual não é só uma questão israelense. O processo que está ocorrendo em Israel vai afetar ao povo judeu, em sua identidade, na relação entre diáspora e Israel, na vida comunitária judaica, no sistema educacional, nas sinagogas e nas organizações sionistas e não sionistas da comunidade.

85% do povo judeu no Mundo são laicos, reformistas ou conservadores. 15% são ortodoxos e ultra- ortodoxos. Israel está breve a se tornar uma ditadura de 15% do povo judeu. Aprendemos, ou melhor não aprendemos da historia, que odio gratuito levou a destruição do 1º e do 2º Templo e levará a destruição do 3º Estado Judeu. Dizer que isto é um problema dos israelenses é tapar o sol com a peneira, uma vez que judeus americanos, no Forum Kohelet, são àqueles que estão a 10 anos atuando neste processo e apoiando os grupos extremistas de direita e messiânicos em Israel. Ausentar-se é dar a eles a oportunidade de atuar sozinhos, sem contra-partida.

E, por fim, e apesar de eu tratar neste artigo do conflito interno de identidade do Estado de Israel, não haverá nenhuma solução se não cuidarmos e solucionarmos o terceiro conflito, o externo, com o povo palestino, com o domínio de outro povo. A nossa liberdade só será total com a liberdade do povo palestino, com a criação do estado da Palestina ao lado do Estado de Israel. Para a extrema-direita, o sionismo religioso e messiânico sua identidade também está definida através da conquista e anexação dos territórios do Estado da Palestina, e se possível da expulsão dos palestinos da Grande Israel, entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. O sionismo liberal, de centro e de esquerda, tem que entender que não existe democracia para o povo judeu. A democracia é de todos os cidadãos que vivem entre o Jordão e o Mediterrâneo, judeus e palestinos, em Israel e na Palestina. E, sim, os palestinos terão que passar um processo muito parecido com o que estamos passando hoje, 75 anos após a fundação do Estado de Israel. Mas, isto ocorrerá no futuro e não podemos exigir maturidade de identidade nacional de um povo que ainda não tem seu próprio estado.

Os judeus da diáspora não podem deixar Israel para os israelenses, pois o que acontecerá nesses próximos 4 anos terá influência direta na identidade judaica mundial. Afetará a todo o povo judeu, seja aonde estiver. Mais de um milhão de israelenses saíram as ruas durante mais de 14 semanas, entendendo que não podem omitir-se e assim como eles a diáspora, ou melhor dito os judeus liberais-reformas-conservativos, representando 85% do povo judeu tem que sair as ruas e não pode se omitir, pois os judeus de direita já se manifestam através do Forum Kohelet e influenciam em todos os setores da vida em Israel. A nossa identidade está em jogo, em crise e como disse Dante

No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.”