Lutamos por vossa e nossa liberdade, por vossa e nossa honra humana, social e nacional… Viva a fraternidade do sangue e das armas da Polônia em luta. Viva a liberdade! (documento da ZOB – Organização Combatente Judaica, distribuído no gueto de Varsóvia em abril de 1943)
Oitenta anos depois de amanhã. Era o início do Pessach, 19 de abril de 1943. Começava a insurreição dos judeus remanescentes do gueto de Varsóvia contra o extermínio final executado pelos nazistas. Nasci poucos anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial e o impacto da Solução Final, nome fantasia que os nazistas alemães deram ao plano de aniquilar os judeus europeus, ainda era enorme. Era raro encontrar uma família de emigrantes judeus que não tivesse algum parente ou amigo assassinado durante a guerra. Foi uma hecatombe sem precedentes, planejada e executada com frieza burocrática, eficiência tecnocrática e crueldade hedionda. Ao final dela, cerca de um terço de todo o povo judeu havia sido eliminado.
O gueto de Varsóvia, para o qual foi escorraçada toda a população judaica da capital polonesa e de alguns arredores (cerca de 450 mil indivíduos), formou-se em outubro de 1940. Área superlotada, com densidade habitacional média de 7 pessoas por quarto, onde grassavam fome sistêmica e epidemias letais. As rações de comida foram reduzidas a 10% do que seria o normal. Antes da guerra, a taxa de mortalidade dos judeus em Varsóvia era de 500 mensais. No gueto, esse número decuplicou.
Por trás da asfixia, havia uma complexa rede de diversionismo e mediações ilusórias. Os nazistas instituíram a Judenrat, administração formada por judeus e que mediava os contatos com os alemães. Na prática, seu poder era quase nenhum. Mesmo com boa fé e na expectativa de diminuir o sofrimento dos prisioneiros do gueto, a Judenrat serviu apenas para dar uma sensação ilusória de normalidade. Também foi criada uma polícia judaica, cujos integrantes, em nome da autossobrevivência, reprimiam todo tipo de contrabando para dentro do gueto (comida, por exemplo) e colaboraram ativamente quando começou o processo de deportação em massa para os campos de extermínio. Eram odiados pelos prisioneiros.
Em julho de 1942, os nazistas iniciaram, em ritmo acelerado, o esvaziamento do gueto, deportando os judeus remanescentes para campos de extermínio. Em cerca de 8 semanas, foram 300 mil deportados. A partir desse momento, consolidou-se a sensação do genocídio iminente, que, até então, vinha sendo praticado em doses “moderadas”. Grupos que tinham militância política antes da guerra (comunistas, socialistas, sionistas de esquerda) começam entendimentos para unificar um programa de ação, na perspectiva de uma reação armada contra os nazistas. Isso conduziu à formação, em outubro de 1942, da ZOB – Organização Combatente Judaica.
Com a ajuda vital da resistência polonesa não-judaica de fora do gueto, algumas armas chegaram à ZOB. A direção do grupo refletiu uma unidade impossível na realidade comunitária judaica do pré-guerra. Comunistas ligados ao partido polonês e socialistas do Bund, antissionistas estruturais, trabalharam com as organizações juvenis sionistas, quase todas de orientação à esquerda.
No dia 19 de abril de 1943, iniciou-se a revolta, com uma emboscada contra um destacamento nazista. O desequilíbrio de forças era esmagador. Contra uma máquina de guerra poderosa e bem treinada, cerca de 600 combatentes (algumas fontes citam 750) sem qualquer experiência militar e mal armados (2 carabinas automáticas,100 rifles comuns, centenas de pistolas e revólveres, um número indefinido de coquetéis molotov).
Contra todas as expectativas, o levante durou quase um mês. Ao final, poucos rebeldes sobreviveram, escapando pela rede de esgotos varsovianos. Seguindo ordens de Himmler, o gueto foi completamente destruído, transformando toda a área numa montanha de ruínas. A intenção era varrer da memória a existência daquele lugar e da luta antinazista.
O Levante do Gueto de Varsóvia fertilizou revoltas em outros guetos e campos de extermínio. Rebelaram-se Sobibor, Bialistok, Auschwitz, Treblinka, entre outros, em maior ou menor escala e em condições objetivas inimagináveis.
Creio que todas as perguntas sobre a resistência armada judaica contra o extermínio sistemático já foram feitas. Há muitas tentativas de resposta, nenhuma delas definitiva. Emerge sempre uma certa indignação quando se lembra a demora em reagir contra o genocídio. Como disse, há muitas possíveis respostas, mas, tal como acontece com presos políticos torturados que não resistem ao suplício e delatam companheiros, gosto de lembrar uma observação da escritora norte-americana Marie Syrkin: “Aqueles que nunca foram submetidos a teste similar deveriam se abster de julgamentos morais”.
Não faz muito sentido continuar homenageando apenas ritualmente os que preferiram morrer com honra, de armas na mão, do que se submeter ao jugo de carrascos implacáveis. É preciso aprender, ao menos, algumas lições básicas e atemporais. Cito apenas duas.
Enquanto houver alguém escravizado, explorado, discriminado e oprimido, não importa em que meridiano, será necessário resistir. Cada grupo, em cada época e dadas as condições objetivas e subjetivas, encontrará a forma mais adequada de resistência. Os revoltosos do gueto mostraram os limites da convivência e da conciliação com o opressor. Valeu há oitenta anos, continua valendo hoje.
Tomo emprestada de Primo Levi a segunda lição. Disse o químico turinês, partisan que sobreviveu a Auschwitz: “Há Auschwitz, portanto não pode haver Deus”. O conformismo religioso foi, certamente, um dos obstáculos ao enfrentamento do nazismo e fonte de imobilismo séculos afora. Muitos religiosos, fincados no sobrenatural, diziam que, embora inexplicável, aquela era a vontade de Deus. Por “aquela” entenda-se o assassinato em escala industrial, incluindo crianças e gestantes que sequer tinham tido “oportunidade de pecar”. Um Deus cruel, omisso e, portanto, cúmplice de atrocidades. Há herdeiros dessa estupidez, que preferem repetir indignidades a fazer uma reflexão honesta sobre crenças insensatas. A promiscuidade entre religião, campo do irreal e da fé, e o jogo real da vida, com suas explicações complexas e suas interrogações intermináveis, deve-se combater sempre.
Aos que tiveram a coragem de enfrentar a morte com dignidade e percepção de futuro, dedico esta passagem da lindíssima canção Sentinela, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant: Longe, longe, ouço essa voz/Morte, vela, sentinela sou do corpo/Desse meu irmão que já se foi/Revejo nessa hora tudo que aprendi/Memória não morrerá.
Abraço. E coragem.