Quem quer morar num lugar onde tem tiro todos os dias? (lojista da Praça Seca, região da Grande Jacarepaguá, no Rio de Janeiro)
A pergunta podia parecer uma bobagem. Como fui eu mesmo que a fiz, não visto a carapuça. Onde será que eu moro? De verdade, não apenas pelo carimbo do CEP. Desde minha entrada triunfal, na falecida maternidade Arnaldo de Moraes, até meus passos hesitantes de hoje, jamais morei em outra cidade que não fosse o Rio de Janeiro. Passei por bairros das zonas norte e sul, em alguns com longas permanências. No entanto, volto a perguntar: onde eu moro? O que significa pertencer a uma cidade? Não me refiro apenas às coleções nostálgicas que enfeitam nossas raízes mais antigas.
João Cabral de Melo Neto, no intervalo entre uma aspirina e outra, era um andarilho. Nas cidades onde serviu como diplomata, gostava de andar livremente. Em Sevilha, que adorava e à qual dedicou inspirados poemas, podia caminhar horas entre as ruas, tirando o delicado véu que escondia a identidade mais profunda do lugar. Flanar livremente. É assim na cidade onde caminho? Ainda existirão andarilhos como o João do Rio e o Nássara, que encarnavam um tipo de carioca que, suspeito, está em fase avançada de extinção?
Como posso dizer que moro no Rio se, em boa parte dele, sequer posso pisar, sob pena de ser abatido por bala perdida, ou pior, desaparecer para sempre, como num episódio do Além da Imaginação? Vou contar um pequeno caso. Pouco antes da pandemia, descobri o endereço onde funcionou o consultório dentário do Grande, em Vigário Geral. Constava de um velho Diário Oficial, registrando multa por falta de autorização para pendurar placa externa do consultório.
Guardo viva a memória do local, pequeno sobrado na lateral de uma pracinha, à qual se tinha acesso por uma rua de terra batida. De posse do endereço, pesquisei imagens atuais das redondezas. Lá estava a pracinha, com grama maltratada, e o sobrado. Bateu uma vontade irresistível de botar os pés naquele território congelado em lembranças ternas. Quem sabe, fotografar algum fantasma desgarrado, esquecido da tarefa de assombrar?
Consultei um taxista conhecido, Vigário Geral lhe era familiar. Desaconselhou-me o passeio. A área é hoje dominada por bandos criminosos, e uma pessoa estranha, flagrada tirando fotos, podia ser confundida com um batedor de bandos rivais da gangue dominante. Eu estaria frito. Lembrou-me do que havia acontecido em agosto de 1993. Dezenas de policiais encapuzados invadiram a favela local e trucidaram 21 moradores, uma das piores chacinas da história da cidade. Ação de vingança pela morte de 4 policiais por traficantes da região. Ali, em suma, é parte da cidade em guerra permanente, da qual só tenho notícias longínquas, através do jornal e da mídia virtual.
O Rio tem quase 800 favelas, onde vivem, de acordo com o Censo de 2010, 1,4 milhão de pessoas. Junto com um grande amigo, visitei uma delas, a Ladeira dos Tabajaras, em meados dos anos 70. Era quase uma vila rural, muito pobre, com molequinhos batendo bola e Marias com lata d’água na cabeça. Sobe o morro e não se cansa, pelas mãos leva a criança… Uma visão meio romântica, à la Orfeu do carnaval (filme chatíssimo, mas com imagens preciosas da cidade nos anos 50). Hoje, não me atreveria. Não sou candidato a Tim Lopes. Pra resumir a encrenca: meu acesso está vetado, de cara, a um quarto da população da cidade.
A zona oeste não tem roteiro diferente. Cerca de meio milhão de moradores da Grande Jacarepaguá estão no meio do fogo cruzado entre traficantes, milicianos e policiais. Como num país ocupado por exército estrangeiro, lá vigora toque de recolher, portões e janelas não podem ser trancados (os criminosos alegam que não podem ter obstáculos no caso de confrontos).
Aqui e ali vejo jipes especiais levando turistas para os Favelas tours(!). O que será que procuram? Cabrochas se esgueirando pelas vielas com samba nos pés? O exotismo de uma pobreza idealizada? “Histórias de superação e empreendedorismo”? Não sei. O que posso garantir é que não conhecerão nada do cotidiano tenso, limitante, violento, segregador, das periferias do Rio. Será, provavelmente, um passeio pela “cidade cenográfica” dos agentes.
Com tantos e aflitivos impedimentos, o máximo que posso dizer é que moro numa pequena porção da cidade, na zona sul. Sou, por assim dizer, um zonasulrioca. Com batismo entre os tijucariocas. O Rio, com suas histórias, seus personagens, seus quintais, seus mistérios, é um projeto de vida. Que, infelizmente e à minha revelia, acho que não conseguirei realizar.
Abraço. E coragem.