Tudo na vida quer tempo e medida (Dito popular brasileiro)

Fazia tempo que a gente não se via. Dessas separações que a pandemia provocou. Não foi fácil dar conta da demanda reprimida logo no reencontro. Entre tantos assuntos que hibernaram durante a Peste, voltou um de difícil trato. O amigo tem uma história cortante de relação com o pai. As memórias são dolorosas, de silêncio muito e afeto pouco. Prefere não tocar no assunto, mas resolvi avançar um passo. Perguntei-lhe se não há ao menos uma lembrança, um lampejo, um trinado, que lhe traz conforto.

Contou-me de uma remota Sexta-Feira Santa. As rádios costumavam respeitar o clima solene da data programando apenas músicas sacras da tradição cristã. Ouvia-se melodias graves, que evocavam dor e escuridão, na casa do meu amigo, então um pirralho. Como sempre, uma barreira invisível o separava do adulto pouco acolhedor e distante. Mundos sem diálogo.

De repente, o inesperado fez uma surpresa (obrigado, Johnny Alf). O velho o chama para compartilhar o sofá. Desconfiado, sobe naquele móvel exclusivo da adultice e se acomoda, sem encostar no pai, que parece a anos-luz dali. Ficam juntos, sem conversar, mas unidos por uma estranha e efêmera sensação de pertencimento. A invasão do território desconhecido foi tão potente que criou raízes que sobreviveram até o momento em que, involuntariamente, as evoquei. Um pouco naquilo que Mia Couto definiu como a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo. Não apagam a ausência, as cobranças indevidas, a violência insinuada, mas as anestesiam levemente. A mostrar que os espectros mais assustadores podem conviver com uma doce passagem e recontar, transformando-a, parte da história. Com a assessoria dos filósofos Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, que recomendavam, carnavalesca e sabiamente, não rimar amor e dor.

Breve parênteses. O Menino torcia o nariz não somente para as músicas sacras, túnel de passagem para um mundo repleto de severidade, culpa e castigo, mas também para os filmes bíblicos e de inspiração religiosa, que andaram na moda durante a meninice. Ben-Hur, blockbuster nos anos 50, não passava de catequese cristã, disfarçada de mensagem edificante. Sansão e Dalila, com Hedy Lamarr e o canastrão montado em músculos Victor Mature, mereceu um comentário sarcástico do Groucho Marx. “É o único filme em que o mocinho tem os peitos maiores do que a mocinha”, disparou. Grande Julius Henry!

De volta para o futuro, digo, para este papo. Zissi me proporcionou muitos momentos memoráveis. O Grande, com seu jeitão discreto, sabia cativar sem espalhafato. Podia ser apenas passando ao Menino o suplemento infantil dominical do Correio da Manhã ou dando uma carona inesperada para a escola no heroico Morris Oxford, de saudosa memória. No entanto, houve também comigo, tal como para o meu amigo, um momento especial.

Ocorreu que um tio de segundo grau foi hospitalizado com câncer. Na época, era sentença de morte. Num domingo, planejou-se uma visita a ele. Zissi rebelou-se. Posso imaginar por quê. O tal tio era totalmente ausente, parece que não se esforçava para criar intimidade conosco. Então, et pour cause, ficou decidido. Não iria ao nosocômio (ainda existe essa palavra?). E me estendeu a liberação. Pode parecer maldade, mas fiquei feliz. Para uma criança, ambiente hospitalar é tão desejável quanto beber Emulsão de Scott ou tomar injeção.

Não se tratou apenas de garantir uma tranquila tarde de domingo. Zissi adiou, sem premeditar, meu primeiro contato com a Morte. Ela, a Indesejada das Gentes, já estava à espreita e levaria meu velho alguns anos depois.

Sou solidário ao meu amigo e a todos os que conservam pendências com relações antigas cheias de conflitos, mágoas, rancores. Não é nada fácil lidar com estas assombrações. Do pouco que aprendi peleando com meus espectros, sei como é importante não ficar na espuma do ódio e das acusações. Fantasmas detestam luz e, por isso, é desejável expô-los com toda a sua complexidade. Sua história, seus leva-e-traz, seus bumba meu boi, seus isso e aquilo. Talvez se consiga perceber, em algum canto pálido da arena, um aspecto subestimado ou desprezado. Somos todos, sem exceção, frágeis, e a fragilidade pode gerar monstros, fantasias e solidões. Cabe a cada um negociar com esses muitos dançarinos, que tanto podem nos levar para o Monte Calvo como para o teatro Bolshoi.

Abraço. E coragem.