Do primeiro nascimento a gente não recorda já do segundo sim. A recordação de uma imagem, uma palavra, uma música, um colo, também uma ameaça à vida pode constituir um segundo nascimento. E foi isso que ocorreu ao menino Boris quando ele tinha seis anos, pois numa madrugada entraram na casa onde vivia com lanterna e revólver. Eram policiais nazistas do sul da França no distante ano de 1944; ele foi levado à Delegacia. A Senhora Farges o salvou ao dizer em sussurro que não se devia dizer que era judeu, e que ele até já tinha outro nome. O nome de Boris passou a ser Jean Bordes, novo nome numa nova vida, pois havia escapado da morte ajudado pela sua nova mãe, a Senhora Farges, que tinha sido sua professora. Ele nunca mais viu seus pais, mas soube que tinham sido enviados a um campo de extermínio. Em toda a sua infância o tema da morte foi onipresente, até que começou a pôr em risco a própria vida. Na escola onde Boris estudava se formavam grupos que entravam em disputa, e ele subia em árvores altas para espiar os adversários. Percebeu o quanto era rápido para subir e descer de árvores altíssimas. Imaginou descer rápido se pudesse se agarrar de galho em galho como se fosse um macaco. Era magro e forte, e se prendia em cada galho na descida. Todos se reuniam para vê-lo, até os educadores, e foi se sentindo valorizado.
A guerra terminou, e o menino se transformou em um bom estudante, médico, psiquiatra, psicanalista. Rememorando a descida das árvores, percebeu que flertou com a morte, como se desejasse seguir o caminho dos pais na guerra quando foram mortos. Desafiar a morte e vencê-la foi indispensável para construir seu porvir. Pôs sua vida em jogo cuidando para não morrer, precisou ser ousado. Se tivesse sido equilibrado poderia despertar pena, afinal, perdeu seus pais com menos de seis anos. Quantas pessoas não vivem ou viveram situações semelhantes à desse menino, me perguntei.
O menino Boris que nasceu duas vezes foi é o Boris Cyrulnick, uma referência mundial em resiliência e essa história e outras está em seu livro autobiográfico “Corra, a vida te chama”. A descida das árvores foi marcante, e não tardei em associar a uma aventura de infância. Tinha dez anos quando mudei de casa para um apartamento: nova rua, novo grupo de meninos, e eu chegava como estranho. Tinha uma bicicleta vermelha e branca, comprada de segunda mão pelo meu pai, que se integrou ao meu corpo. Podia andar nela muitas horas por toda a cidade sem cansar e sem que a família soubesse. Durante alguns anos, preferia estar na bicicleta do que jogando bola, pois foi com ela que descobri os ventos da liberdade, ela me abriu as portas do que é ser livre.
Morava num edifício que ficava ao lado de uma lomba íngreme, asfaltada, em tempos de poucos automóveis. Comecei a pensar em descer a lomba com a bicicleta. Um dia, pedi aos novos amigos da zona que cuidassem a vinda de automóveis pela velha a deserta rua Vasco da Gama. Ficavam na esquina e tinham que me avisar se vinha carro ou não, e aí era o sinal para minha descida. Várias vezes desci com êxito e ganhei fama de corajoso no bairro. Confirmei, assim, que viver era bom demais, e lembro com felicidade a descida, pois foram momentos em que conquistei a vida. Entre a segurança e a liberdade pode-se pensar nossa humanidade: uma parte precisa da segurança, já outra se excita com a liberdade.