Subida ao dorso da dança

(vai carregada ou a carrega?)

é impossível se dizer

se é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança

toda a energia retesa

e todo o nervo de quando

algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão

de quem vai montado em sela,

de quem monta um animal

e só a custo o debela,

como a tensão do animal

dominado sob a rédea,

que ressente ser mandado

e obedecendo protesta.

Então, como declarar

se ela é égua ou cavaleira:

há uma tal conformidade

entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina

e a parte que se rebela,

entre o que nela cavalga

e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer

de ambas, cavaleira e égua,

que são de uma mesma coisa

e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar

nenhuma linha fronteira

entre ela e a montaria:

ela é a égua e a cavaleira.

(João Cabral de Melo Neto)

Era uma matéria eletiva do doutorado. Mergulhada em Camões, Pessoa, Fernão Lopes , Vieira, Alexandre Herculano, porque sou dessas, gosto do antigo, resolvi me matricular numa matéria cujo tema era Clarice Lispector. Dividi a sala com Maria Teresa Cerdeira, que hoje é das maiores especialistas na obra clariceana, era um pessoal diferente, gente mais jovem, mais escolada, tempo que podíamos fumar na sala e, não raro, barzinho com o professor depois da aula.

Clarice , assim como Dina Sfat, Yara Amaral e Lilian Lemertz, eram daquela cepa de mulheres que paira um mistério. Todas, sem exceção, morreram cedo. Uma vez, ao ler um conto de Clarice, perguntei ao meu pai como ela era. Meu pai dirigia o Museu Imagens do Inconsciente e algumas vezes ela estava lá, levando o filho que tinha esquizofrenia para pintar. Achei interessante ele só me responder: ”Tinha uma cara angulosa como a sua”. Ainda era muito nova para saber dos eslavos e suas feições, que como falei anteriormente, herdei do meu bisavô Domingos. Foi o bastante para me sentir bonita. A outra relação familiar era com o escritor Lucio Cardoso, amigo do meu avô Arthur, melhor amigo da escritora e, talvez, o seu grande amor, que só não foi realizado pela impossibilidade, por Lucio ser gay. Meu pai pegava seu fusquinha, ia até Ipanema e buscava o autor de Crônicas da Casa Assassinada, levando-o para passar a tarde com minha família, no casarão que tive a sorte de crescer. Quando ele morreu, eu ainda não era nascida, mas almoços feitos com esmero pela minha avó, cercado de intelectuais, ficou na história familiar.

Muito se fala e escreve sobre Clarice, e não é esse objetivo do texto. Apenas é um mote. Queria falar de uma das minhas colegas, uma loira de longos cabelos e olhos azuis, que ficava no canto da sala sorvendo tudo que era dito pelo professor. Ela não era de interagir muito, o que atiçou minha vontade de entrar no seu mundo. Dizem que estereotipar os outros é horrível, mas eu tenho uma opinião sobre pessoas caladas. Ou observam a tudo e tem muito o que dizer, só falando a quem lhes interessa ou são uma nulidade mesmo.

Não era o caso dessa moça. Por um lance do destino nos encontramos no café e sentamos na mesma mesa. Acho que ela nutria uma certa simpatia por mim e entramos num assunto proibido. Não há coisa mais desagradável que perguntar sobre a tese de alguém que está se matando para escrever. Falei por alto que estudava o Padre Vieira, ela riu, porque aqueles meus cabelos cacheados, vestido hippie comprido, não eram bem o padrão de quem está mergulhando na obra de um jesuíta. Ficamos a vontade, e ela então , com sua voz suave, começou a discorrer sobre o seu tema. Me disse ser apaixonada por dança e sua tese, vou resumir aqui, era sobre João Cabral de Melo Neto, mais precisamente sobre a Poesia “Estudos Para uma Bailadora Andaluza”. Contou de forma detalhada sobre a formação da Andaluzia, aquele caldeirão cultural de ciganos, judeus, árabes Ela falava com uma voz tão meiga que me lembrava a apresentadora Paula Saldanha, de O Globinho da minha infância. Falou–me sobre a música, o sapateado, os movimentos fortes que desvelam o canto, as ideias de sentimentos aparentemente díspares que evocam o medo, a tristeza, a tragédia, a alegria. Obviamente ganhei uma aula sobre João Cabral de Melo Neto, quando foi diplomata nessa região e se encantou com aquela expressão artística. Achei graça, porque sempre soube que o poeta não era lá admirador de música, sempre foi amante das artes plásticas. Já tomado pela cegueira, ele confessava aos seus pares e amigos: ”Antes tivesse ficado surdo do que cego”. Chico Buarque, em uma entrevista, comentou sobre o seu topete, quando jovenzinho, de musicar Morte e Vida Severina, sabendo posteriormente que o autor nunca foi chegado a canções.

E essa moça exprimia-se de uma forma tão apaixonada, que seus olhos plácidos se tornaram tremendamente azuis. E ela pôs-se a falar da dançarina andaluza batendo forte o pé no solo,  o que seria uma ligação entre o chão e o ar através dos pés e das mãos. Ligando o céu à terra. Uma dança telúrica, precisa, onde música e dança tornam-se uma coisa só. Sensualidade, delicadeza, disputa, todas as emoções humanas contidas ali. A dançarina andaluza afirma a gravidade. Seu trabalho consistia em fazer um contraponto entre a dançarina andaluza, que firma os pés no chão e a bailarina clássica, que ao contrário, se esforça para ir contra a gravidade. Ao vermos uma bailarina clássica flutuando, até esquecemos dos treinos exaustivos e métodos e técnicas sobrehumanas a que se submetem  para atingir a perfeição. Quem viu os pés de uma bailarina desnudos sabe do que estou falando.

Eu poderia terminar essa reflexão falando sobre as diferenças entre Portugal e Espanha, sobre até como os santos espanhóis são mais animados , vide Santa Teresa D’ávila e seus arrebatamentos. Ou entrar numa discussão infrutífera de quem foi mais filho da puta  no processo de colonização, ou até sobre o caráter melancólico dos portugueses e a extroversão de seus vizinhos.

Essa moça, da qual não lembro sequer o nome, me fez pensar em outro fato. Quando D. Sebastião cometeu a burrice de embarcar numa missão suicida ,a fim de combater os mouros no Marrocos em 1578, e foi “morrido” na Batalha de Alcácer-Quibir, sem deixar descendentes. O rei da Espanha, em agosto de 1580, foi proclamado rei de Portugal. E da porra toda, inclusive do Brasil. Foi assim que o Contreras, meu antepassado espanhol, veio parar aqui em Pindorama. Engenheiro militar, atravessou o oceano  a mando  de Felipe II, em outras palavras, nasci pela estupidez de um carola de 24 anos. Minha bisavó Anna, descendente direta dele, foi uma mulher muito a frente de seu tempo, foi tesoureira da primeira greve de mulheres no Brasil, professora de francês, sufragista, dela herdei os olhos tristes e a teimosia.

Por outro lado, ao falarmos de literatura e século XIX, não há como desvincular a figura de Carmen, no romance de Prosper Merinée, do arquétipo de mulher fatal. Cabelos negros, olhar forte como de uma Irene Papas em Zorba o Grego (ok, licença poética, Carmen era espanhola, mas aquele olhar desafiador da personagem da grega Irene tentando pegar a sua cabra de volta dos homens do povoado está gravado na minha retina), aquela cuja beleza e graça intrigam. Fascinam. Uma bandoleira que vive de contrabandos, encantos e bruxarias. Aquela que envolve o homem em perigo, visto ser dona de seu destino. Indomável, Apesar do tempo e das versões, uma réplica simbólica se presentifica em  Carmen:” Eu não quero ser atormentada, muito menos comandada. O que quero é ser livre e fazer o que me agrada.”. Nada importa mais a ela que a liberdade. E é esse desafio a sociedade patriarcal que a leva a um fim tão trágico. O conto de Merineé foi escrito há 175 anos atrás.  Segundo as atuais estatísticas, morrem hoje dez mulheres por dia de feminicídio no Brasil. Faço portanto minhas as palavras de Giovanna Dealtry: Enquanto houver dia ou mês de qualquer minoria é porque ainda não somos “gente”. Era só isso mesmo.