Estou há tempos para escrever sobre a coragem, mas se até agora não escrevi foi por falta de coragem. É um tema difícil, pois não se trata tanto de um saber, mas de uma decisão; não é tanto uma opinião, mas um ato. Já tive coragem, já tive medo, ora até covarde, também já fui imprudente. Ao longo dos tempos aprendi histórias corajosas, escutando, lendo e vivendo. Se hoje escrevo sobre a coragem, é, em parte, pelo carnaval. Voltou o carnaval do povo brasileiro, a coragem de ser alegre, de voltar a ser feliz após anos de medo e tristeza. Voltaram gente para o governo que devem reconstruir o destruído, gente que ama o Brasil.
“Ora, tenha coragem”, disse Virgílio a Dante no início do Canto XVII, do Inferno de “A Divina Comédia”. Dante, para escrever, precisou da companhia imaginária de um poeta. Dom Quixote buscou Sancho Pança para viver suas aventuras, e até mesmo o astucioso e corajoso Ulisses teve o apoio da deusa Atenas. Quantas coragens diferentes se pode ter, como a coragem de amar, a coragem de escrever, a coragem de não ser indiferente ao sofrimento alheio. Coragem de assumir o desejo, coragem de criar, enfrentar os perigos, coragem para reparar, assumir uma derrota, coragem diante das ameaças. Neste país é necessário coragem para ser da raça negra ou indígena, raças e povos que na História foram mortos, escravizados, viveram genocídios como o povo yanomami agora.
Para pensar a coragem, tratei de recordar alguma história, e lembrei de uma escrita por Pedro Tierra, no seu livro “Pesadelo – Narrativas dos anos de chumbo”. A capa do livro e os desenhos de Elifas Andreato são de rara beleza, apesar de expressarem a crueldade e a covardia dos armados. Tudo transcorre na prisão, quando um dia entrou na cela dos presos políticos um general nordestino, baixo, atarracado. Vinha acompanhado de um oficial, o sargento de turno, um cabo e um soldado. Formou-se um semicírculo perto da porta, havia inquietude, nervosismo, curiosidade. Com voz anasalada e forte sotaque, disse: “Somos generosos. Estamos preocupados com a juventude do Brasil”. Seguiu falando, e os presos apavorados, mas ao final perguntou: “Quem de vocês aceita ir à televisão e se declarar arrependido?”. Pavor e silêncio entre os presos, enquanto os olhos do general varriam, inquisitivos, um a um dos presos, à espera de uma resposta. Finalmente, o mais velho do grupo, tinha uns sessenta anos, bem mais alto que o general, dá dois passos em sua direção e diz:
“General, a cela é o espaço do preso. O último espaço. O senhor, portanto, não devia ter entrado aqui. O senhor vir aqui oferecer a esses meninos que se arrependam em troca de qualquer coisa eu compreendo, embora não aceite. O senhor fazer essa proposta para mim, um comunista moído a pancada por seus mãos de ferro, é um insulto! O senhor se retire da cela. Aqui ninguém se arrepende”. O rosto do general, dos seus acompanhantes, de todos os presos, eram rostos de espanto. O general ainda disse: “Vocês vão se arrepender”. Retirou-se e, aos poucos, os presos se aproximaram, se abraçaram e começaram a falar. Durante meses todos pagaram com o corpo a ousadia do gesto, e ninguém se queixou. Pelo resto da vida carregaram os sobreviventes as palavras de bravura e ousadia. Como o autor não escreveu o nome de quem foi o líder que falou na prisão, eu o segui, mas imagino quem foi, e, se for quem penso, ele morreu com 93 anos.
Pedro Tierra escreveu no livro que a coragem é um ato de loucura. Acrescento que a coragem pode ser um ato de loucura criativa. Hoje sinto que temos chance, não vamos nos arrepender de ser brasileiro, a bandeira é nossa, de todas, todos, todes. Além do que tem muita gente que reúne sabedoria e loucura, saber e decisão como os artistas, os idealistas, e, as vezes, até nós conseguimos. As vezes nos abatemos, desistimos, entristecemos na necropolítica, mas levantamos. Temos em comum a capacidade da metamorfose, a potência da utopia.