Dedico esta crônica ao homem que não largou a mão da filha de 15 anos, mesmo depois de morta no grande terremoto que devastou Turquia e Síria.
Seu Salomão nasceu na Ucrânia profunda, ali onde Judas perdeu as botas e quase morreu de frio. Grande observador das coisas e gentes do seu tempo, criou uma obra, sempre escrita em ídish, que acabou ultrapassando a fronteira estreita das massas judaicas da Europa Oriental. Suas histórias eram lidas com grande interesse em círculos operários e ambientes populares. Com o tempo, começou a ser conhecido como o Mark Twain judeu.
Em 1906, mudou-se para os Estados Unidos e morou em New York. Ao morrer, em maio de 1916, seu funeral foi acompanhado no Bronx por uma enorme multidão. Falou-se em 250 mil pessoas. Salomão Rabinovitch, que adotou o pseudônimo de Scholem Aleichem (A paz esteja convosco), deixou um belíssimo testamento, publicado na íntegra pelo New York Times de 17 de maio de 1916.
Um dos dez itens do documento se refere à forma como ele gostaria de ser lembrado em cada iortsait (aniversário de falecimento). Dispensava honrarias e o Kadish, a oração dos Mortos. Preferia que aqueles que se reunissem para homenageá-lo escolhessem um de seus contos, de preferência entre os mais engraçados, e o lessem em voz alta. No idioma que lhes fosse mais confortável. Era melhor, dizia, ser lembrado com um sorriso. Posso entender. Conheceu a pobreza, a precariedade da vida no shtetl, o antissemitismo, os rostos endurecidos pela vida levada no fio da navalha. Queria violar a corrente de angústia e encontrou no humor uma ferramenta preciosa. Bel Kaufman, neta de Scholem Aleichem, diria, muitos anos depois da morte do avô, que “rir é resistir”.
Tive o privilégio de ler pequena parte da obra de Scholem Aleichem no original. Meu sogro, o jornalista David Markus, tinha domínio pleno do ídish e, através dos volumes de capa azul das Obras Selecionadas (Oisgueveilte Verke) do seu Salomão, me introduziu à cidade fictícia de Kasrilevque, a Menahem Mendl e sua esposa Sheine Shendl, a Tevie, o leiteiro, aos tipos que, com seus dramas e esperanças, vestiam e criavam uma tradição cultural/existencial riquíssima. Eram memoráveis as risadas que o David dava ao reler aquelas histórias, que, a rigor, faziam parte de sua própria trajetória de vida. Mesmo de forma bem modesta, incorporei esta herança.
Há pouco menos de duas semanas, lembrei o 28º iortsait da dona Lilia. Vivesse num mundo ideal e dela só lembraria os poucos colos e levezas. Tudo, no entanto, aconteceu como no trecho de uma letra do Ivan Lins. Seria necessário perdoar a cara amarrada, a falta de abraço, a falta de espaço, a falta de ar. Os dias foram assim. O silêncio, quando carecia o verbo. A porta fechada, quando o sinal implorava o verde. A distância, quando o toque dissolveria rancores. A casa cheia de portas fechadas que somos, como bem disse o escritor luso António Lobo Antunes, expandiu-se. Nenhum de nós saiu ileso disso, e, francamente, não merece celebração.
No entanto, embora não se possa mudar o passado, é possível entendê-lo com mais sutilezas, mais complexidade. Dona Lilia tomou muita pancada, literal e metaforicamente. De tiranos, de carne, osso e intolerâncias, e fantasmas. Essa foi sua escola e dela acabou prisioneira. Marcas no corpo e na alma. Aí, aconteceu um pulo do gato. Para libertar-se, concluiu uma faculdade e, desafiando o marido machista, entrou no mercado de trabalho. Enviuvou e, com o salário, garantiu sustento ao casal de filhos, que puderam estudar sem preocupações materiais. Essa mulher corajosa, sim, eu posso e devo homenagear.
Neste iortsait, repeti o exercício anual poetisado pelo Ivan Lins. Quando largar a mágoa, quando lavar a alma, quando lavar a água, posso também lavar meus olhos.
Dona Lilia Gruman. Minha mãe.
Abraço. E coragem.