Como uma obra original pode ser reescrita por vários meios a fim de enfatizar um de seus discretos aspectos interpretativos?Linda Hutcheon em Uma Teoria da Adaptação (2013) elabora e reúne em seu livro conteúdos sobre a destreza e capacidade criativas do criador que adapta a partir de uma obra já criada. Adaptar, então, é reeditar uma arte e fazê-la ressaltar suas nuances por ângulos ainda não explorados, mantendo uma fidelidade com o original. Às vezes, a adaptação, por excelência, supera o original como em Jogos Vorazes (2012) de Suzanne Collins, um livro cuja emulação cinematográfica bateu récorde e foi mais bem elaborado e recebido do que o romance. Neste, a previsibilidade da trama contida na narrativa destituía dela o suspense que foi bem capturado no filme. Em outros casos, a adaptação é o próprio romance escrito a partir de um filme ou seriado de TV. Denominados de “tie-ins”, esses gêneros já consagrados, atendem a um público seleto de leitores que desejam ter acesso à linguagem da imagem traduzida em palavras. Bem, então, a adaptação se baseia num universo criativo e racional em que histórias podem ser recontadas pelo viés de um observador que mantém o princípio fidedigno na cópia.

Infelizmente, no universo bolsonarista, as histórias de seus fiés políticos vão além de uma racionalide plausível e viram uma chacota sensacionalista. Histórias dessa estirpe passam por diferentes versões da original, criando, em vez de adaptações, uma multitude de inverdades. Marcos Do Val, Senador da República pelo partido PODEMOS, ė um exemplo desse mundo paralelo de falácias que revelam uma dúzia de tramas mirabolantes sobre um golpe de estado. Os personagens desse conciliábulo são seu comparsa o deputado Daniel Silveira e o ex-presidente Bolsonaro. Abaixo são apresentadas as versões de Do Val:

  • O ex-presidente Bolsonaro e Daniel Silveira participam de uma reunião na presença de Marcos Do Val. O intuito da reunião era grampear o ministro do STF Alexandre de Moraes a fim de pegar qualquer deslize e usá-lo contra ele. Isso facilitaria um golpe porque o ministro faz linha dura contra o governo bolsonarista.
  • A reunião acontece, mas o ex-presidente não se envolve na trama.
  • O ministro recebe a denúncia de Marcos Do Val e pede para formalizá-la no Ministério Público.
  • Marcos Do Val desmente que o ministro tenha feito tal pedido
  • Marcos Do Val não se lembra exatamente onde a reunião aconteceu, se na Granja do Torno (residência oficial dos presidentes da república) ou no Palácio Jaburu (residência oficial dos vice-presidentes)
  • Marcos Do Val resolve fazer a denúncia influenciado por seu assessor Leonardo
  • Desmente isso depois.

Após essas declarações, Do Val apresenta um laudo psiquiátrico atestando sua sanidade mental. A lógica aplicada para explicar essas versões está longe do contexto da adaptação. Adaptação é arte e exige maestria do adaptador. Requer uma coerência dos fatos narrados e uma precisão quanto ao uso da linguagem, quaisquer fatos ou linguagens que sejam. Nas entrevistas, o senador demonstra que não tem essas habilidades. Não encadeia sentenças lógicas e comete erros graves no uso da língua. Poderia ter ficado na área de segurança privada e não ter ousado na política. Mas, é oportunista como os vários políticos que aproveitaram a bocada de 2018, ano em que o país deu uma guinada de 360º para trás e elegeu, dentre suas mais preciosas pérolas, Carla Zambelli, Damares e Do Val. Estes são os clássicos bolsonaristas em que o cosmos das mentiras e realidades se misturam num caldo de sururu cujas partes (o dendê, o leite de coco e o molusco, que dá o nome à sopa) se tornam indiferenciáveis do todo. Definitivamente, o CASO DO VAL é um fenômeno para a psiquiatria, bem como os bolsomínios e o psiquiatra que forneceu esse laudo. Sururu neles.