Imaginem a reunião de um filósofo, um crítico literário, um midiólogo, um escritor e um conferencista. O produto de tantos é Umberto Eco: são cinco em um.
Quem não leu O Nome da Rosa, seu primeiro romance, tem sorte, pois é uma experiência inesquecível. Muitas das suas palestras começam com uma história, como a conversa com um taxista paquistanês numa de suas visitas a Nova York. Na viagem do aeroporto ao hotel se estabeleceu um papo animado entre os dois, até uma pergunta desconcertante do taxista ao italiano Eco:
– Quem são os inimigos?
Umberto Eco disse logo que a Itália não estava em guerra com ninguém, mas o motorista esclareceu que se referia sobre rivais históricos. Quando o autor de O Nome da Rosa desceu do táxi, ficou a pensar e terminou escrevendo sobre a presença real ou imaginária do inimigo.
A construção do inimigo é uma revisão histórica a partir da Bíblia, que tem como primeiro crime o assassinato de Abel por Caim. Logo Eco lembrou que Mussolini cresceu através do ódio e da guerra, assim como Hitler e Stalin. Os Estados Unidos construíram sua identidade com guerras imperialistas, contra o comunismo, contra o terror de Osama bin Laden, com a invasão do Afeganistão. Eco chega aos judeus, cuja história é repleta de perseguições por serem estranhos, primeiro pelo Deus invisível, depois pelos costumes, pela alimentação. Acrescento a importância de Lutero na construção do judeu como inimigo, figura importante na constituição do ódio, e assim se chega à Alemanha do século 19, sobre a qual o poeta Heinrich Heine advertiu: “Onde queimam livros acabam queimando pessoas”.
Em seguida, passeia pela história dos negros, que em 1798 eram descritos na Enciclopédia Britânica como estranhos, com muitos vícios, sem qualquer compaixão, um terrível exemplo de corrupção como homens. O racismo estrutural contra os negros tem uma trágica história no mundo, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, onde jovens são assassinados até hoje pela polícia.
As mulheres foram maltratadas na história, perseguidas e mortas como bruxas e feiticeiras. Acrescento o que vivem as mulheres na maioria dos países islâmicos com as burcas e os maus-tratos que sofrem. Umberto Eco enfatiza o quanto não se pode prescindir do inimigo no processo civilizatório. Faz uma longa referência ao livro 1984, de George Orwell, símbolo da distopia ditatorial. Lembro agora de O Homem que Amava os Cachorros, romance do escritor cubano Leonardo Padura sobre o assassinato de Leon Trótski.
Umberto Eco não se perguntou por que as guerras, as rivalidades, as perseguições marcam toda a História da humanidade e quais são suas raízes. Muito já foi dito a respeito, e o próprio Freud escreveu, já em 1915, sobre a guerra, chocado com a crueldade da Primeira Guerra Mundial.
Essa guerra mudou a forma de ele pensar o ser humano a ponto de escrever uma nova teoria das pulsões, a partir de 1920. Introduziu a pulsão de morte, uma pulsão complexa que tem sua dimensão criativa do novo, e também a pulsão de destruição, derivada desta.
Outro caminho, sem excluir este último, apontou J. B. Pontalis, psicanalista e escritor francês, que insiste no tema do fratricídio, a rivalidade entre irmãos, a rivalidade edípica. Reflete sobre o tema das lutas fratricidas, das guerras civis, e dá um exemplo atual: lê o conflito entre israelenses e palestinos sob a ótica de que são dois irmãos que disputam a Terra Santa ou a Santa Mãe – “É minha, não é tua, é minha”.
Impossível, até agora, compartilhar uma mãe como indivisível. Para Pontalis, o fratricídio tem a mesma importância do parricídio ou do matricídio, mas ficou uma questão sem mencionar, a mesma que ficou em aberto no ensaio do Umberto Eco: o papel do poder, o poder de elites frias e arrogantes através da História.
O poder já foi medido em força bruta nos primórdios da civilização, passou ao poder das terras, do ouro, do dinheiro, dos valores, e aí sempre cresceu a importância das armas. Não por acaso a indústria das armas é das mais poderosas no mundo, aliás, o poder econômico sempre apoiou as guerras.
Duas questões finais. Uma é a do fanatismo, do ódio cego nas rivalidades. Na raiz desse ódio cego está o narcisismo das pequenas diferenças. Um narcisismo no qual as pequenas diferenças originam os fanatismos, pois o fanatismo é onipresente na tragédia humana. Temas para seguir a conversa, mas concluo com a outra questão, na verdade uma ideia: construir um amigo é uma construção mais lenta, mais amorosa, mais enriquecedora do que a de construir um inimigo