Terminada a Copa e sepultado o ufanismo histérico dos locutores. Sei que parece café requentado, mas ainda quero comentar um dos aspectos da atual geração de jogadores brasileiros. Não vou cair na tentação barata de olhar para os cabelos platinados, nem para a proteína dourada de uns quantos deslumbrados. Também não vou “focar”, ô palavrinha danada!, na hipocrisia recorrente do Neymar. Depois de se declarar “destruído psicologicamente” após a derrota para a Croácia, que ia “doer por muuuuito tempo”, caiu na farra menos de 48 horas depois. Todos queremos saber o que ele anda fumando ou bebendo para ter uma recuperação mental tão fulminante! Não, meus amigos, não entrarei nesse jogo. Meu desejo é destacar uma febre tóxica que é bem mais geral e contagiosa: a da religiosidade artificial que lobotomiza multidões de players.
A Folha de S. Paulo reuniu declarações de nove jogadores, avaliando as razões do fiasco ante os croatas. Todos atribuem ao Além, a forças sobrenaturais, tudo o que deu errado. Seleciono quatro delas.
Neymar: “O Brasil merecia vencer. Mas essa não era a vontade de deus (..) Obrigado por tudo, meu deus, me destes tudo e eu não posso reclamar de nada. Só agradecer por cuidar de mim”. Weverton: “A vontade de deus é boa, perfeita e agradável. Eu te amo, deus, e te agradeço por tudo”. Éder Militão: “Fizemos o nosso melhor dentro de campo, mas ainda não foi da vontade de deus”. Vinícius Jr.: “Os planos de deus são maiores que os nossos”. Os outros vão na mesma linha de conformismo e alienação da realidade.
Nada tenho contra a fé alheia. Neste caso, porém, farejo o uso extensivo de um artifício pueril para evitar o sofrimento e renunciar à autocrítica. Qualquer analista de botequim sabe que o início de elaboração de uma perda é reconhecê-la e procurar formas de compreendê-la. Na medida em que identificam um poder inacessível como agente do sofrimento, os jogadores se sentem aliviados. Se o juiz é implacável e seus desígnios insondáveis, ninguém além dele pode ser responsável pelos acontecimentos. Muito simples … e conveniente.
Futebol é território rico em folclore e superstições. João Saldanha dizia que “se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano acabaria empatado”. Pai Santana, folclórico massagista do Vasco da Gama, discordaria. Cansou de fazer “trabalhos” contra os adversários. Certa vez, foi flagrado depositando objetos suspeitos perto do campo do Flamengo. É também do Vasco a história do sapo de Arubinha, que já contei por aqui. O clube da Colina passou longo sufoco, atribuído ao anfíbio de pele rugosa.
O Flamengo, garantem os mais crentes, tem um santo protetor. É São Judas Tadeu. Entre 1944, ano em que fora tricampeão, e 1953, o rubro-negro amargou jejum de títulos. Em 1953, o pároco da Igreja de São Judas Tadeu foi até a Gávea celebrar uma missa com o time. Pediu que os jogadores acendessem uma vela e a dedicassem ao santo. Batata! O Flamengo foi campeão naquele ano e nos dois seguintes. Ninguém questionou a razão do poder do santo ter parado em 1955 (o time só voltou a ser campeão em 1963). As más línguas, não sem uma dose de razão, atribuem a conquista do campeonato de 1955 ao fato do zagueiro Tomires ter quebrado a perna do atacante Alarcon, do América, no jogo decisivo. Naquela época, não havia substituições e os diabos rubros jogaram com dez a maior parte do tempo.
Há ainda muitos causos, como a jamais subestimada alma supersticiosa dos botafoguenses (“há coisas que só acontecem com o Botafogo…”), que já depositaram no Biriba, cãozinho vira-lata, a sorte nos gramados. Entre torcedores, nem o céu é o limite. Tudo, no entanto, sempre correu num clima leve, de zoações com as hostes adversárias. Jamais institucionalizado ou apropriado por interesses comerciais.
O que acontece hoje é muito diferente. Começou com as comemorações padronizadas, dedinhos para o alto, vez por outra joelhos para o chão, numa comunicação tão circunspecta quanto falsa. Os dedinhos automáticos me lembram uma sátira do grupo uruguaio de murgas Agarrate Catalina. O narrador pergunta: se deus é onipresente, por que se olha somente para o céu quando se quer falar com ele?
Por que se intensifica o desfile de carolas entre jogadores? Arrisco uma interpretação. Existem pesquisas que mostram queda na confiança dos brasileiros na ciência. Quase 30% confiam pouco ou nada nas informações de cientistas. Resumo da ópera: a razão está em baixa, o desvario e o obscurantismo dão drible da vaca. Junto disso, vai o ambiente estelar das celebridades, que obedece a padrões de moral cínica. O bom marqueteiro orienta apresentar ao público uma imagem pia, de contrição religiosa, para equilibrar as cenas frequentes de ostentação, arrogância e ambição selvagem. Nada, portanto, sugere uma prática religiosa consciente, sincera. É apenas, com possíveis exceções, simulação de gestos, com interesses bem profanos.
Saudade das comemorações espontâneas, da separação radical entre esporte e religião, da alegria sempre improvisada nas grandes conquistas. Do futebol como fenômeno lúdico e apaixonante.
Abraço. E coragem.