Rio de Janeiro: antiga cidade brasileira, hoje desaparecida (Millôr Fernandes)

Visitei a feira anual do MST, no Largo da Carioca. Uma exposição de alimentos orgânicos, publicações e pequenos artesanatos dos assentamentos Brasil afora. Aproveitei para comprar algumas garrafas da cachaça Lula e dá-las de presente aos amigos livreiros do centro da cidade.

Flanar pelo centro do Rio, um grande prazer em várias etapas da vida, virou quase um exercício de ficção científica. A impressão é devastadora. Como se Mefisto tivesse jogado um quebranto e feito desaparecer inúmeras e longevas referências. Foram para o limbo, junto com os antigos frequentadores de botecos, que paravam nos balcões para um cafezinho amigo. Xícara tirada da água fervente, açúcar em grandes potes de vidro com tampa metálica, sem opção de adoçante. O slurp vinha com muito cuidado para não queimar a língua. Vida sem pressa.

Assombrado por escombros da memória, cheguei à livraria Folha Seca, que já vai para 25 anos. Fazia mais de três anos que não encontrava o Rodrigo Ferrari, criador do local e bravo resistente. O abraço apertado escondeu por instantes a tristeza do que se vê ao redor. Poucas vezes senti o Rodrigo tão abatido. Contou que vão colocar um piano na rua para comemorar um quarto de século, com roda de samba e tudo. No entanto, tá difícil garantir estrutura para todo mundo que vai aparecer. A Toca do Baiacu, ponto tradicional vizinho à Folha, anda borocoxô, o dono só abre quando se sente ensolarado, a fim de tomar uma cerveja com os raros frequentadores. Na despedida, saí com a sensação amarga de que um farol potente pode estar rateando. No que depender de mim, o que não é muito, continuará iluminando caminhos pela noite dos tempos.

Na terra arrasada, pirilampos. A Leiteria Mineira, mais de século no lombo, segue oferecendo mingau e canja como se as eras não houvessem passado. Rio que já foi de tantas leiterias, pretextos lácteos para encontros e desencontros. A Numismática Vieira, octogenária, Robinson Crusoé na rua do Rosário às moscas. A Confeitaria Itajaí, cuja filial em Laranjeiras abasteceu durante décadas a família Gruman com pizzas e bolas de rum. As filas dominicais, no mais puro estilo carioca, pareciam o caos das antigas Bolsas de Valores. A Casa Nair de materiais esportivos, pequena loja na hoje fantasmagórica avenida Marechal Floriano. Aqui e ali, farmácias, como tem hipocondríaco nesta cidade!, vão colonizando a outrora diversidade comercial.

Mia Couto escreveu O vendedor de passados. No livro, um angolano exerce um estranho ofício. Vende passados falsos. De um modo geral, os clientes são ex-colaboradores do regime colonial português, tentando apagar os rastros de seus numerosos malfeitos. Claro que nem tudo vai bem, a memória não é material tão plástico, cobra taxas ao ser invocada.

Pensei no Mia enquanto andava por aquela região. O que acontece quando uma cidade vê sua memória despedaçada? É possível construir uma identidade cultural e urbana destruindo sistematicamente referências visuais, olfativas, gustativas, afetivas?

Não estou reivindicando uma volta impossível ao Rio de Marc Ferrez. Ao tlec-tlec do vendedor de casquinha e pirulito cônico de açúcar caramelizado. Tampouco um retorno triunfal dos concursos de Miss Elegante Bangu e do bonde São Januário. Sei que foram definitivamente silenciados os apitos da fábrica de tecidos Confiança, em Vila Isabel, e da cervejaria Brahma, na Tijuca. O leiteiro que deixava garrafas de leite CCPL nas portas das residências e as carrocinhas da Kibon estão irremediavelmente aposentados.

No curto prazo, a tendência é desanimadora. Nada a ver com o entusiasmo do poeta Mário Pederneiras, que, lá por mil e oitocentos e lá vai fumaça, viu o Rio como “uma explosão de espanto e pasmo”. Os espaços públicos desembarcando na cobiça dos interesses privados. A arquitetura curvilínea e as múltiplas heranças visuais, debochadas como entraves ao “progresso”. O silêncio e a introspecção encarados como taras antissociais. Há como consertar? Não tenho a menor ideia. Espero que as próximas gerações de cariocas se interessem pela história da cidade e, a partir dela, ajudem a torná-la mais amigável e digna do mito do cidadão boa praça, boa ginga, gente boa.