À Clara Goldfarb, cujos sonhos foram muitas vezes os meus.

… Quantos livros tem o mundo/e não saciam meu apetite profundo:/quantos consumi e ainda morro de jejum (Tommaso Campanella)

Pule de dez. Os assuntos preferidos de qualquer roda de bar, nos remotos anos 70, eram Marshall McLuhan e filmes impenetráveis da Nouvelle Vague. O canadense nos inundava com novidades como “o meio é a mensagem” e “aldeia global”. Não havia manual de marxismo convencional que desse conta desses conceitos, que, olhando em retrospecto, anteciparam a era da internet. Hectolitros de chope foram consumidos sem que se chegasse a grandes conclusões. Hoje, só mesmo em circuitos acadêmicos McLuhan deve ser lembrado.

Pois foi nele que pensei quando li matéria sobre o cenário atual dos livros. Antes de qualquer comentário, faço um registro para os autos. Sou fascinado por livros em seu formato impresso. Tenho a necessidade tátil, a história precisa ser tocada, e não apenas pela imaginação. O papel, seus aroma e textura, complementam meu diálogo com o escritor. Quantas vezes me surpreendi ao comprar um livro usado, com dedicatória, que desdobro em cenários e novos protagonistas! Nessas horas, fecho os olhos e acaricio as páginas, pele generosa que me abraça.

Bem, de volta à cena do crime. Cai-me o queixo ao saber que o livro físico (detesto essa expressão) virou fetiche. Não por conteúdos revolucionários ou incensos reveladores. Nada a ver com o que disse Saramago sobre seu ofício: “Vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”. É uma razão um tanto mcluhaniana. Ao invés de portador do conhecimento e da sensibilidade, meio de humanização, a mensagem corrompida do livro-meio passa a ser a da vulgaridade hedonista e da parlapatice vaidosa. As editoras mencionam o “fator selfie”, ou seja, tirar fotos com um livro, mesmo que o indivíduo não tenha lido uma linha sequer, multiplica likes. Cerca de 15% dos adultos (!) compram livros pelas capas. Neste território medíocre, elas precisam ser instagramáveis. É a forma virtual de sair na rua com uma abóbora pendurada no pescoço.

Uma senhora francesa, com milhões de seguidores no Instagram, recomendou que pessoas comprassem livros falsos para compor cenários de fotos. Por um terço do preço das edições reais, há apenas capas, sem texto dentro. É a atualização de um velho conhecido: o comprador de livros a metro, que simulava ser intelectual.

Nessa triste inversão de valores, vale tudo. Já há livros para armazenar perfume, outros com efeitos holográficos. Um consultor de marketing fez o lance definitivo. Disse que, para despertar interesse, o livro precisa ser sexy. Viajo até um antigo filme do Woody Allen, dividido em episódios. Num deles, o ótimo Gene Wilder descobre estar apaixonado por uma ovelha e leva a paixão às últimas consequências. Conseguem imaginar um casal formado por um livro sexy e seu consumidor, em lua de mel numa cabana charmosa? O romance só não pode ficar tórrido, sob pena de um dos cônjuges virar cinza.

Há resistência a esse mundo de aparências. Minha neta querida se habituou a frequentar livrarias desde cedo. Adora o ambiente. Perguntei o que desperta sua curiosidade num livro. Ela respondeu que vê, sim, a capa, mas já sabe que um pequeno resumo da história está na contracapa. Não se deixa subornar por um design sedutor. Mais esperança nos teus passos do que tristeza nos meus ombros, copio de Cora Coralina.

Se assim continuar caminhando a Humanidade, em que buraco vamos nos meter? Uma empresa de telecomunicações desenvolveu uma simulação do que pode se tornar o ser humano no próximo milênio. Claro que uma projeção tão ambiciosa está sujeita a alvoroços e solavancos, mas os resultados não parecem inverossímeis. Quais seriam as características deste homo tecnologicus? Radicalizando tendências já visíveis, nosso descendente seria quase corcunda (pelo uso constante de computadores), com pescoço grosso (para suportar o esforço permanente de olhar para monitores de todos os tamanhos) e mãos em forma de garra (a mesma que já observamos para segurar celulares). O aumento de exposição à luz artificial poderá tornar o crânio mais grosso e o cérebro menor. Não vi nesse exercício futurológico a possibilidade da mão espalmada, que segura, ampara, ressalta, acaricia o livro. Sem a companhia deste condensador de sensibilidades, os homens, além de corcundas, pescoções e mãos-de-garra, terão uma alma amputada.

Abraço. E coragem.