Acordei de um sonho estranho/Um gosto, vidro e corte (da música San Vicente, de Fernando Brant e Milton Nascimento)

Ressaca das boas. Depois de roçar o Apocalipse, a gente começa a curar a dor de cabeça e recuperar cordas vocais. Os olhos, no desábito da luz, tentam entender os escombros que se espalham por todo canto. Numa esquina penumbrosa, a placa trincada avisa que o terreno é minado. Há rachaduras, cianetos, miragens, cantos de sereia, miasmas, areias movediças.

Gosto amargo andar pelas ruínas. O cenário evoca Blade runner, rostos sem face, luzes trêmulas, medo em gotas. Lembra quando os encontros de amigos e familiares implodiram, em rachas metastáticos? O que muitas vezes merecia conversa e entendimento, virou aversão e ruptura. O choque de perceber que existiam algumas personas fascistas escondidas em cápsulas cordiais levou a generalizações equivocadas.

Na calçada escorregadia, apanho um recorte de jornal molhado. Um comentarista escreve sobre o apoio do Neymar ao Bolsonaro. Esculhamba, indigna-se. Compreendo a revolta, sou racionalmente solidário a ela. No entanto, vejo um outro ângulo. Com aparente déficit cognitivo, Neymar já demonstrou ser incapaz de elaborar um raciocínio complexo. É um reprodutor patético de clichês e, nessa qualidade, duvido que perceba a dimensão do bolsonarismo. Chamá-lo de fascista é inútil, ele e seus parças não fazem ideia do que é isso. Talvez achem que se trata de um videogame com vestimentas negras.

Sigo em frente, desviando-me dos estilhaços da cultura despedaçada, das cinzas da floresta consumida, dos gritos da ciência violentada. Os rachas fizeram aflorar uma tentação perigosa. A do monocromatismo. Casagrande e Felipe Mello são realidades contrastantes e, respeitado um diálogo civilizado, não merecem cancelamento. O combate vem pela saliva, não pela arminha. Tenho minha preferência, mas ela não implica banimentos. Jane Fonda, a Hanoi Jane, tinha contrapartida em John Wayne. Representavam alternativas de comportamento e posição política. Que disputassem preferências, sem guilhotinas. A gente precisa retomar o prazer da discussão, do argumento, do convencimento pelo duelo de ideias.

Fumaça negra se espalha no horizonte. São pneus queimados por alucinados que obedecem aos zurros do infame. O espectro de Saint-Saëns, irônico, vê ali a mistura azeda do Carnaval dos Animais com a Dança Macabra. Em cima de um caixote precário, Angela Machado perora contra os nordestinos, aplaudida por seu marido, presidente do Flamengo. A torcida vermelho-e-preto passa ao largo, celebrando troféus e soltando rojões indiferentes. É atropelada pelos Gaviões da Fiel e a Galoucura, que espantaram a zica, escorraçaram os quizumbeiros e mostraram como se reage aos seguidores do fascio.  “Mano, que país é esse? A polícia cruza os braços, e torcida organizada que tem que resolver a parada”, Marcelo D2 dixit.

A noite no Monte Calvo parece não ter fim. Eis que ouço um som familiar. Vem de uma sobreloja acanhada, luz tímida, insegura. Chego perto e reconheço violão, cavaquinho, pandeiro, vozes emocionadas. Subo os poucos degraus e esbarro numa multidão de milhões. Reconheço vivos e mortos naquele mar agitado. Alguém me oferece a mão, a vontade e a esperança. Os versos nos envolvem numa película vital. No pequeno palco, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Monarco, Manacéia, toda a Velha Guarda da Portela, Nelson Sargento, Cartola, Ivone Lara, Bide, Marçal, Mano Décio da Viola, Clementina de Jesus. Movimentam-se em perfeita harmonia. As palavras são as do Juízo Final, mas oferecem a Aurora Inicial. O Sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente.

Vamos saindo aos poucos. Os escombros e a escuridão estão lá. Uma névoa macia envolve a multidão, que, abraçada, ouve Nelson Cavaquinho apontar o caminho. É o juízo final/A história do bem e do mal/Quero ter olhos pra ver/A maldade desaparecer. Bússola policromática, ninguém sabia o final do caminho. A única certeza era a fraternidade espontânea que nos movia. Uma camaradagem generosa, que já começava a varrer o entulho e aceitava adesões pela estrada.

Alguém gritou, mostrando uma pequena brecha que se abriu no horizonte nublado. E o imenso bloco de sujos reiniciou a longa jornada.

Abraço. E coragem.