Neste mês,as cigarras cantam

E os trovões caminham por cima da terra,

agarrados ao sol.

Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,

E depois a noite é mais clara,

E o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão

Mas tudo é inútil.

Porque os teus ouvidos estão como conchas vazias,

E a tua narina imóvel

Não recebe mais notícias

Do mundo que circula no vento

(Cecília Meirelles)

Das inúmeras versões das fábulas de Dafne, que calcula-se ter surgido na Grécia na segunda metade do século II a.C, por mais variações que tenha adquirido ao longo do tempo, possui uma mesma sequência narrativa. Apolo, filho de Leto e Zeus, irmão gêmeo de Artêmis, tem aquelas qualidades que a gente não encontrará jamais nos usuários do Tinder. Lindíssimo, há quem diga ser o mais bonito de todos os deuses, toca lira divinamente, exímio conhecedor da medicina, ele é o sol, a luz, a juventude, a poesia. Sabemos da fama de seu pai e obviamente ele e a irmã foram uma pulada de cerca do deus dos deuses. Hera, a patroa oficial de Zeus, tomada por ciúmes, ao descobrir a traição ordenou que Píton, uma gigantesca cobra nascida da lama e do dilúvio, fosse catar a amante do marido onde quer que estivesse e acabasse com a raça daquela “vagabunda” (palavras de Hera). Apolo porém, o boy delícia, com flechadas certeiras matou a serpente.

Apolo, por esse feito, recebeu fama e como consequência, foi tomado pela vaidade. Eros, enciumado, resolve aplicar-lhe uma lição. Lançou-lhe uma flecha de ouro e o fez apaixonar-se pela Ninfa Dafne. Fez o mesmo com ela, porém arremessou-lhe uma flecha de chumbo. Resultado: Enquanto Apolo foi tomado por uma paixão profunda, Dafne tomou horror do deus, uma verdadeira repulsa. Apolo tentou de tudo para aproximar-se da ninfa, mas acabou por ser condenado a um amor dilacerante não correspondido. Cego pelo sentimento, passou a persegui-la. Ela, desesperada, fugiu e pediu ao próprio pai, Peneu, que desse a ela uma forma para que ninguém se apaixonasse. O pai a metamorfoseou em um loureiro e Apolo então anunciou ser essa a sua planta favorita, decidindo dar coroas de louro a todos aqueles que realizassem atos de heroísmo. Tanto na Grécia, quanto em Roma, a coroa de louros era o principal símbolo de glória para gregos e romanos.

O que adoro nesse mito, e isso tem a ver com toda a carga de humanidade que os deuses gregos possuem, é que até o fodão dos deuses sofreu por amor não correspondido. Foi assim comigo, o meu primeiro amor, aquele ser que tocou fundo minha alma infantil. Que me deixava sem respirar. Quero explicar que criança tem outro padrão estético. Nelson Rodrigues, por exemplo, aos seis anos de idade, achava uma das mulheres mais lindas do mundo a lavadeira de sua casa, uma negra gorda com um bócio enorme. O objeto de minha devoção era um caçador de cabeças maori (e que acabou sendo caçado) dentro de um frasco de formol, no Museu Nacional. Passei muitos anos visitando-o, desde a mais tenra idade até passado os meus trinta anos, Estão impressas na minha memória cada linha das tatuagens de seu rosto. Aqui confesso, despida de todo e qualquer pudor, que ao ver o incêndio terrível do Museus Nacional, com tudo que implicou, inclusive ver minha infância virar cinzas, chorei muito por ele. Por esse amor de uma vida inteira. E o pior, sem a menor possibilidade de reencontro.

Toda essa introdução é para falar dessas últimas semanas. Foi confusa, difícil, o que não faltou foi gente chorando de tristeza porque não terá mais o Genocida no comando do país. Mas não quero julgar. Antes do Exalta Samba lançar seu sucesso “Me Apaixonei pela Pessoa Errada”, o Maníaco do Parque já era o maior campeão de missivas de amor no presídio. O que me incomodou mais que tudo, nem foi a Kate Marrone de Ribeirão Preto de arma em punho perseguindo um negro na véspera do pleito (até porque no frigir dos ovos ela e o Bob Jeff fizeram mais pela eleição do Lula que o Janones), nem o Bozo no último debate falando em problema de “prosta” e usando a palavra mioma no lugar de bioma natural, mostrando que foi aluno aplicado do coach Sergio Moro. O que me pirou nem foi a tentativa de golpe ridícula de travar as estradas, muito menos o Bozo e seu manifesto de 2 minutos e alguns segundos, depois do silêncio de dois dias. Se ele for assim transando com a Micheque, usando o papo de “desculpa amor, é porque vc é muito gostosa”, irmã, melhor pedir pra Damares fazer uma terapia de conversão sexual no Agostinho, pelo menos ele vai te maquiar, te botar lá em cima e te levar para umas baladas bem dignas. O que me importunou não foi ver a tia do zap ajoelhada na Esplanada dos Ministérios, com as raízes dos cabelos pretos e o resto amarelo gema, vertendo lágrimas e rímel preto escorrendo pela cara, porque querida, se num comprou uma maquiagem à prova d’água é que a coisa não tá tão bem assim, né minha consagrada ? Nesses 4 anos perdi pessoas de VERDADE, por conta da irresponsabilidade desse pilantra e claro que fiquei mexida com os bozoafetivos botando fotinho de Luto porque o Capetão vai embora. Mas aí é só usar a minha liberdade de expressão, mandar pra casa do caralho e seguir. O que me pegou mesmo, na veia, nesses dias subsequentes e anteriores a eleição transformam esse suco Brasil estragado  numa grande bobajada.

Para me fazer entendida, convido-os a voltar a República Velha e seu último presidente. O presidente On The Road. Washington Luis, o homem que acreditava que as estradas eram o caminho do progresso do Brasil, não a toa, chamada de “Estradeiro”. Nasceu em Macaé, no Rio, em 1900, mas toda a sua carreira política foi feita em São Paulo. Cidade de que conhecia mesmo, não tarcisicamente falando. Passou três décadas na vida pública e, pelo que apurei, trabalhando mesmo. Basta falar que enquanto parlamentar atuou de forma exemplar na epidemia da gripe espanhola.

Assumiu a presidência da República em 15 de novembro de 1926. Sobre sua vida pessoal, apesar de casado e com filhos, era muito mais animada que a nossa. Era chamado de “Rei da Fuzarca” e um aficcionado por marchinhas de carnaval. Dois fatos importantes em sua vida em 1928: Foi baleado pela amante, uma marquesa italiana jovem e formosa ,Elvira Vishi Maurich, no Copacabana Palace. Foi internado e a versão oficial era de que havia  tido uma crise de apendicite. Quatro dias depois a nobre italiana foi encontrada morta pela polícia, motivo: Suicídio. Ah tá. E agora vem outra ação da sua parte nesse mesmo ano: CRIAÇÂO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. Em 1930 foi deposto, uma Junta Militar assumiu a presidência, entregando-a a Getúlio Vargas. Como bom escorpiano, na despedida do Palácio do Catete, planejou vingacinha contra Getulão. Pediu ao mordomo que escondesse a faixa presidencial, símbolo delegado pelo povo. O mordomo foi tão eficiente nessa função, chegando a escondê-la no próprio corpo, que Getúlio nem viu a cor da faixa. Esta só chegou as mãos de GV em 1934, quando ele assumiu o cargo após a eleição constituinte.

Pois bem, vamos agora a Polícia Rodoviária Federal. Segundo a Constituição, seu papel é o patrulhamento ostensivo e preventivo das rodovias federais, para evitar as ocorrências de atividades criminosas que se utilizam destas rodovias, como o tráfico de drogas. É vedado a ela investigação criminal, caso identifique um crime, seu papel é registrar e repassar para a PF. Daí o meu espanto ao ver que na manhã do dia 24 de maio desse ano, uma operação conjunta com a PM e a Polícia Rodoviária Federal deixou um rastro de 23 mortos na Vila Cruzeiro, a segunda incursão mais letal desde a do Jacarezinho ,que ceifou a vida de 28 pessoas. As desculpas dadas ,de roubo de carga , para justificar a presença da PRF, não se sustentaram. O presidente Bolsonaro, como de praxe, chamou os policiais de “bravos guerreiros”. Mesmo a Defensoria Pública munida de provas contundentes que houve execução sumária, que moradores que não tinham nada a ver com o babado foram mortos, o Corno Mor da Nação , que faz seus asseclas apresentarem projetos de leis que não responsabilizam os policiais, parabenizou os assassinos de farda , por neutralizarem os “marginais”.

É importante salientar que em 2020, o então diretor geral da PRF, Adriano Furtado, foi demitido. Seu erro: Publicar nota de pesar pelo falecimento de um membro da corporação de covid, naquele momento que Bozo era muito criticado pela condução dada a pandemia. Em maio de 2021, justamente no momento da carnificina da Vila Cruzeiro, Silvinei Vasques, amigo pessoal de Flavio Bolsonaro, foi premiado com o cargo. Ou seja, se a PRF já emitia sinais de alinhamento com o bolsonarismo, a ascensão de Vasques só intensificou esse processo. Segundo o Globo “Durante o atual governo a corporação foi contemplada com recursos para a construção de novas sedes, aquisição de helicópteros, etc. Também passou a ser utilizada em investigações , ampliando a sua função para além da fiscalização das estradas”. Não podemos esquecer o protagonismo que a PRF ganhou com episódios que beiram as técnicas nazistas, como GENIVALDO DE JESUS SANTOS, morto por asfixia no porta-malas de uma viatura da PRF, no litoral de Sergipe, em julho desse ano. Ele foi parado por agentes e, ao reclamar da abordagem e estar sem capacete, foi jogado à força num compartimento de trás do carro , onde foi atirado gás lacrimogênio, criando uma câmara de gás. Só para perversidade da situação assumir nível máximo, a família recebeu, três meses depois da morte do rapaz, uma correspondência da Corporação. Até acreditaram inocentemente que era um pedido de desculpas. Por estar sem capacete naquele dia, sem habilitação e de sandálias, Genivaldo foi punido: recebeu quatro multas da PRF. O valor total: R$ 1800.

O fato é que não foram mudanças legislativas que determinaram essas novas atribuições. Uma portaria do Ministro da Justiça, estabeleceu que a Polícia Rodoviária Federal pode ir além das suas funções. Sobre os bloqueios dos “ditos” caminhoneiros e de mais um papel vergonhoso na condução dessa corporação, a imprensa tem falado exaustivamente sobre. O que posso afirmar é que o confronto de Bolsonaro com a PF, relacionado a aumentos salarias não concedidos para a categoria, foi o caminho para que a PRF se tornasse a sua guarda pretoriana.

Vamos aqui ao que realmente me deixou muito mal. No dia 27 de novembro, três dias antes da eleição, o agente rodoviário federal Bruno Vanzan, foi assassinado numa tentativa de assalto na Transolímpica, no Rio de Janeiro. Então foram helicópteros da PRF, homens da corporação, sobrevoando e procurando os meliantes em todo o entorno. Através de uma denúncia anônima, ficaram sabendo que o carro do policial estava no Complexo do Chapadão. Óbvio que chegaram tocando o terror. Não é o presidente deles que diz que na favela só moram marginais ?  Lá, apreenderam dois menores e neutralizaram o segundo, alegando que o menino era do tráfico.

O “neutralizado” se chamava Lorenzo Dias Palinhas. Tinha 14 anos. Segundo seu avô e outras testemunhas, um dos policiais abordou ele, revistou, mandou que subisse na moto e, ao subir, foi alvejado na cabeça, de costas. Execução sumária. Lorenzo ajudava a mãe fazendo entregas de sanduíches na favela. Morreu com dez reais numa mão e um guaravita na outra. Estudava. Os moradores, como sempre ocorre quando se trata de um inocente, se mobilizaram. A PRF ainda tentou mandar o caô que foi bala perdida, mas as testemunhas, que não são poucas, desmentem essa versão. Como muitos meninos carentes, seu sonho era ser jogador de futebol e aguardava ansioso o jogo para vaga nas Libertadores,

Iniciei essa crônica falando do mito de Dafne e Apolo. A etimologia do nome Lorenzo vem de: ”aquele natural de Laurento”, que foi uma das mais importantes cidades do Lácio, no Antigo Império Romano. Laurento vem do latim laurus, louro e Lorenzo significa: ”coroado de louros”. Foi negada a Lorenzo a alegria de um primeiro amor. Ele não vai, como Apolo (e todos nós em maior parte) sofrer pela dor do amor não correspondido. Ele sequer viu o tão esperado jogo do Flamengo. Vi a imagem de seu avô, um vigia, quase da minha idade, e de sua mãe, inconsoláveis no enterro e só consegui chorar. Por todas as vítimas desse Governo Fascista deixo aqui o nome do Lorenzo, que ao invés de uma coroa de louros, simbolizando a vitória por terminar um curso, iniciar uma profissão, recebeu uma coroa de flores de defunto, para ser enterrado. O Chapadão é um complexo que tem um dos IDHs mais baixos do país e um número gigantesco de evasão escolar. No dia que pararmos de identificar como nossos as crianças que se parecem com nossos filhos, brancos e de classe média e percebermos que independente de qualquer coisa o filho de uma é o filho de todas, talvez seja o pontapé para uma mudança. Todo o meu sentimento, meu abraço apertado na família de Lorenzo. E sim, o tamanho dessa dor é imensurável. Que se faça justiça. Era só isso mesmo.