Migrar é morrer um pouco (Alejandro Iñárritu, cineasta mexicano)

Nunca é fácil. Quando a família Gruman decidiu sair da Bessarábia, no início do século passado, havia muito a perder. Raízes nutridas durante gerações seriam cortadas, relações interrompidas, memórias afetivas engessadas.

Existiam, no entanto, motivos para tanta e tamanha aventura. Iedenitz não era dos lugares mais promissores. Pobreza grudada na rotina. Preconceitos antigos que reduziam, por exemplo, o horizonte educacional (o numerus clausus, usado à larga em grandes áreas da Europa Oriental, limitava o número de judeus nos cursos superiores e, em certas áreas do conhecimento, sequer eram admitidos). Pogroms eram sempre uma possibilidade. Nas famílias, contavam-se muitas histórias sobre estes massacres. À luz de velas, sempre pareciam mais assustadoras. As crianças ficavam apavoradas quando ouviam falar sobre o cossaco Bogdan Chmielnicki, herói para os ucranianos, algoz antissemita. Durante a revolta contra os poloneses, no século XVII, centenas de pequenas comunidades judaicas foram dizimadas pelas hordas chmielnickianas. Os mortos contaram-se às dezenas de milhares. Muitos só conseguiram sobreviver à custa de conversões forçadas ao cristianismo.

Já contei um pouco da história da dispersão da minha família, não vou repeti-la. Há mais de um século, meus avós paternos e futura tia acabaram desembarcando no Brasil. Primeiro em Salvador, depois no Rio. Paisagem, cores, língua, cultura, céu, temperatura, radicalmente diferentes. Certamente nunca tinham visto negros, que muitos imigrantes da Europa Oriental associavam a cacau e chocolate. Talvez também a alguma música exótica. Personagens de todos os shteitlach ancestrais transitaram para o álbum de fotografias. Moishe Tshotshkes, o maluco beleza. Der Narisher Haim, o sapateiro. Teivl Kaputnik, o cantor litúrgico. Berl Langue Noz, o professor implacável do heder. Shulem Shpekalingumaleh, o clarinetista da banda klezmer. Itzik Schlemiel, o casamenteiro. Como eram mesmo os nomes do mohel  e do shoihet?

Sem saber, escaparam da morte certa. Tivessem ficado, a asa negra do nazismo os teria alcançado.

Por que lembro justo agora destas fontes queridas? De uns tempos para cá, flagrei-me pensando na hipótese de mudar de país. Foi apenas uma imagem fugaz, inspirada na tristeza de ver o Brasil abrir as portas para o que há de mais reacionário, odioso, desumano, desalentador, obscurantista. Alimentar o pesadelo teocrático. Quando leio os noticiários, vejo pairar o espectro do general fascista espanhol Millán-Astray, que gritava para as falanges franquistas: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte!”. Tudo indica que cerca de metade da população brasileira concorda, em algum grau, com essa bestialidade. Se não concorda, prefere virar o rosto e simular indiferença. Por oportunismo, preconceito de classe, ignorância.

Pudesse conversar com minha tia Molca, que chegou ao Rio em 1921, e meu tio Burach, cabeças lúcidas e progressistas, tenho certeza de que me diriam o que já sei. Que concordam com José Eduardo Agualusa: não existem fascistas gentis. Que a extrema-direita vai desembocar, inevitavelmente, em antissemitismo. Está em seu DNA tanto quanto todos os outros tipos de preconceito. Os judeus que dão de ombros para isso são vítimas de um grave autoengano. Que não adianta sonhar com portos “seguros” neste mundo cada vez mais seduzido não pela última flor do Lacio, inculta e bela, mas pelo velho cactus do Fascio, inculto e horrendo.

Como perguntaria Vladimir Ilitch Ulianov: o que fazer? Molca e Burach não hesitariam. Não somos religiosos, mas lembre-se, taiere quind, daquela passagem do Pessach que diz: Mekadesh hazmanim. Ou seja: Santifique os Tempos. Tempos que nos ensinaram a farejar ameaças, tempos que nos ensinaram que lutar é o melhor caminho. Como lutaram os que resistiram ao fascismo e a todas as formas de opressão.

O Mal espreitava no subsolo brasileiro. Emergindo, mostrou sua face deformada e, não tenho ilusões, vai continuar entre nós. À luta, pois.

Abraço. E muita coragem.