Talvez tenham sido as histórias em quadrinhos. Os heróis eram modelos perfeitos. Quando não impenetráveis, podiam atirar com a mesma arma dezenas de vezes sem recarregá-la, entrar numa briga sem amarrotar a camisa, nem deixar o chapéu cair. Dominavam povos colonizados e nações altivas, sem que os leitores se perturbassem ou questionassem a arrogância. Bastava colocar uma pequena máscara para ficarem incógnitos. Jamais se identificava a origem da riqueza dos abonados. Um deles, sovina contumaz e parasita evidente, atribuía a fortuna a um amuleto. E a gente acreditava.
Leitor voraz dos gibis, é impossível que o Menino não tenha absorvido ao menos parte desse modo de funcionamento das coisas e pessoas. Especialmente no quesito heroísmo. Como, por exemplo, supor qualquer falha de caráter em Clark Kent? Ou intenções inconfessáveis do Mandrake? Quem é que se importava com nuances nas personalidades do Charada, do Pinguim, do Coringa, dos Irmãos Metralha, do Imperador Ming ou do Lex Luthor? Era um mundo perfeitamente dividido, imóvel, cada macaco no seu galho. Como na lenda do Fantasma, o Espírito que Anda, a estrutura era reproduzida de geração em geração. Tal qual a obscena “Guerra do Bem contra o Mal” do Brasil damarizado.
Atravessei um Rubicão zangado para turbilhonar a herança infantil. Foi com o balãozinho da exclamação – ou seria o da interrogação? – que comecei a ler um livro sobre a relação do Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de Literatura em 1978, com seu filho Israel Zamir. Edição americana caprichada. Jamais poderia supor nada diferente da revelação de um pai generoso, semeador do interesse por histórias, presente e estimulante. Afinal de contas, em certa medida ele estava no meu panteão de heróis. Confundi o escritor, personagem ideal, intelectual sensível, Quixote da língua ídish, construção que fiz inconscientemente, com o homem real, que eu não conhecia. O que me contou Zamir?
Em meados dos anos 30, ainda em Varsóvia e num bairro pobre, Singer abandonou mulher, Runia, e filho, Israel Zamir, então com 5 anos, e foi morar em New York. Prometeu trazê-los assim que conquistasse estabilidade no novo país. Jamais cumpriu a promessa. Cinco anos depois, casou-se novamente, sem comunicar nada a Runia. Ela e Israel passaram por grandes privações. Fugiram da Polônia, estiveram brevemente na União Soviética e na Turquia, até se radicarem na antiga Palestina, em 1938. Pai e filho ficaram sem se ver por vinte anos. Em 1955, por iniciativa de Israel, os dois se reencontraram em New York, numa tentativa difícil de criar algum tipo de laço afetivo. Bashevis Singer era uma espécie de workaholic, considerava cuidados com filhos um embaraço para seu ofício.
Mulherengo, Singer, mesmo casado, jamais parou de colecionar casos com mulheres. Alegava ter uma espécie de alma solteira (!) e precisar das histórias narradas por elas para desenvolver seus personagens. Tinha grande poder de sedução pelas palavras e, por isso, foi considerado um dos 10 homens mais sexies dos Estados Unidos. Um Eros salivar. Me fez lembrar de Antônio Maria, que reconhecia não ter uma estampa atraente. Sua mágica vinha do verbo.
Ainda não terminei o livro, mas deu kryptonita no herói. Nada que mexa na minha admiração por livros inesquecíveis, como “No tribunal do meu pai”. O modelo, entretanto, caiu na real. É possível acampar na mesma barraca o criador admirável e o pai indiferente, o prêmio Nobel e o companheiro duvidoso, de “alma solteira” e descompromisso com relacionamentos formais.
A gente constrói uma imagem romântica da figura paterna, muito comum em tradições religiosas (os deuses como Pais eternos, misericordiosos, protetores). Aos poucos, vemos que essa muleta só servia quando nossas maiores preocupações eram conseguir o bambu ideal para fazer uma pipa, o dinheiro para comprar o pulôver de ban-lon, o gumex para não fazer feio no arrasta-pé, o telefone da ruivinha sardenta. Passada a fase e deposto o xerife que resolvia os problemas mais cabeludos, descobrimos que não dá para terceirizar a vida, nem transferir responsabilidades. É aí que, invertendo a história, o Super-Homem se transforma em Clark Kent, que precisa trabalhar, descobrir desejos, dar mamadeira para o bebê, criar sentidos para a vida. O homem comum, com suas sombras e lusco-fuscos, é o verdadeiro herói.
Abraço. E coragem.