Ao Carlos Telles, amigo e camarada, que, vivo fosse, estaria na mesma trincheira do que eu, lutando por um mundo mais justo e fraterno.
Uma vez descartada a hipótese do suicídio, só nos resta o otimismo. (Albert Camus)
Desde segunda-feira passada ando meio descadeirado. Todos os assuntos fora da eleição presidencial parecem pigmeus sonolentos e isso me empurra a escrever novamente sobre ela. Serei inevitavelmente um tanto repetitivo, mas considero relevante fazer perguntas incômodas e lembrar fatos idem. É um momento opaco, de transição para o que não se sabe e, como disse sabiamente Gramsci, “o velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. O que pode ser o novo? Que monstros nos assombram e assombrarão?
A paixão política, ao lado de um saudável envolvimento com desejos coletivos, traz nas entranhas um adversário formidável. Durante décadas participei ativamente de uma instituição judaica progressista no Rio. Experiência fértil, formadora, reconstituinte. Sou muito grato pela oportunidade que tive. Na sala de reuniões da diretoria, ficava uma galeria com fotos de ex-diretores e ativistas. Uma delas era de uma mulher com olhar triste. Ou seria desiludido? Os mais antigos diziam que ela havia se suicidado após as revelações sobre os crimes e desvios stalinistas, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956. Idolatria, excesso de poder individual, substituição da política como prática transformadora pela “genialidade inatacável” do líder. Livrar-nos destes espectros, hoje como então, é um processo de educação cultural e política, que esperamos continuar desenvolvendo sem a ameaça do garrote fascista.
Estou convencido de que a extrema-direita veio para ficar. Não apenas como força legislativa, mas com potencial para se transformar em movimento de massa, competindo com a esquerda pela conquista dos espaços extra-parlamentares. Esquerda, aliás, que, na oportuna expressão de Florestan Fernandes, tem mimetizado com frequência os partidos da ordem. É cada vez mais claro que, mesmo Bolsonaro perdendo a eleição, sua herança repelente, desagregadora, mentirosa, belicosa e negacionista continuará abraçada por dezenas de milhões de brasileiros. Alienar-se ou ridicularizar esta realidade será o primeiro passo para o desastre.
Para tentar vencer, Lula aderna cada vez mais para o centro. No limite, ficará com uma identidade esponjosa. Guilherme Boulos assegurou, por exemplo, que a revogação da reforma trabalhista e a taxação de grandes fortunas serão implementadas. Pelo andar da carruagem e o formato do ornitorrinco, não sou tão otimista. Assumindo compromissos com forças heterogêneas, o companheiro ex-metalúrgico terá que dançar no óleo quente para não se engessar geral. Ganhando, usará seu capital político para mobilizar a população em torno de um programa mínimo de reformas? Tenho minhas suspeitas, mas, como disse o Camus aí em cima, resta, oi vei!, o otimismo.
Ainda Boulos: “Acho que nossa campanha vai ter que dialogar com eleitores que apostaram na terceira via”. É bom que uma liderança de importante movimento popular tenha dito isso. Não foi o que ouvimos de muitos companheiros durante a campanha do primeiro turno. Quantas vezes li e ouvi, vozes e letras carregadas de ódio, que todos os que não votavam em Lula eram fascistas? Uma visão sectária, descolada da realidade, perigosa para o pragmatismo eleitoral.
Por fim, a promiscuidade religião-Estado-política. Em determinados momentos da campanha, parecia que tínhamos desembarcado num feudo medieval, dominado por senhores da terra e seus aliados clericais. Era espanta diabo pra cá, guerra do Bem contra o Mal pra lá, glória a deus pracolá. A fé popular, muito explorada por velhacos, precisa ser respeitada. Ao invés de desprezá-la ou querer apropriar-se dela de forma oportunista/eleitoral, a militância progressista deve aproximar-se dela para compreender sua visão do mundo e informá-la de seus direitos cidadãos, que não dependem de sacripantas travestidos de profetas. Ficar à distância, menosprezando a vivência de tantos brasileiros, é arrogância. Aqui, mais uma vez, deve entrar o trabalho político, a intervenção no cotidiano, rica tradição da esquerda revolucionária e de setores esclarecidos de segmentos religiosos.
Dia 30, claro, vou de Lula para exorcizar o fantasma do Monstro do Lago Paranoá. Já é tarefa de bom tamanho. Antes de encerrar, uma notícia, e uma lição, do Uruguai, país porreta que não me canso de admirar. Dois ex-presidentes orientales, de espectros ideológicos antagônicos, se reuniram para um papo que durou mais de dez horas. José Pepe Mujica, do Movimento de Participação Popular, e Julio Maria Sanguinetti, do Partido Colorado, conversaram sobre democracia, capitalismo, socialismo, economia de mercado, arte e ciência, tecnologia, esportes, drogas, família, amor, vida e morte. Convergiram, divergiram, sobretudo dialogaram. O resultado vai virar livro em breve. Mujica resumiu assim o encontro: “Não quero um Uruguai que dê um espetáculo de política partida. Tem gente que se confunde, que acha que em política é preciso andar aos murros.” Quem sabe um dia o Brasil cresça e apareça, como seu vizinho ao sul?
Abraço. E muita coragem.