O mérito da derrota consiste em isentar o derrotado de qualquer responsabilidade de vitória. (Carlos Drummond de Andrade)
“Lula tem 50%; Bolsonaro, 36%”. Acordei ontem com essa manchete da Folha de São Paulo. Como nos dias anteriores, vi-me cercado nas redes sociais por previsões ufanistas de amigos e integrantes da bolha em que transitamos. Eram favas contadas, só faltava sacramentar uma espécie de mandato divino pelos dedos sábios do povo brasileiro. Mera formalidade. O resultado foi uma das mais brutais quedas de cavalo que assisti na vida.
Não sou, nunca fui, repórter. Por isso, o exercício político que farei agora, no calor da hora e sem edição de imagens, está sujeito às intempéries da paixão e da crença numa experiência de vida que pode não ser boa conselheira. Minha intenção é colocar a bola em jogo.
Antes de tudo, o óbvio. Os institutos de pesquisa falharam grosseiramente ao não captar uma avassaladora onda conservadora, que se movia no subterrâneo das ilusões coletivas e consolida a tendência de 2018. Bolsonaro teve mais de 50 milhões de votos, muito mais do que projetavam as pesquisas. No Rio de Janeiro e em São Paulo, bolsonaristas nadaram de braçada. Vi o meu Rio eleger de goleada mais um governador medíocre, uma bancada federal com o general Pazuello e o “bispo” Marcelo Crivella. Com a centro-esquerda rachada, Romário marcou um fácil gol de letra. Paulistas continuam levando para Brasília luminares medievais, como Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Ricardo Salles e o parasita astronauta Marcos Pontes. No Rio Grande do Sul, cuja capital foi governada pelo PT por 16 anos consecutivos, o inacreditável general Hamilton Mourão elegeu-se para o Senado, derrotando Olívio Dutra, um dos quadros históricos do PT.
O país que emergiu das urnas contrariou uma certa imagem idealizada do povo brasileiro, alimentada pela despolitização das campanhas de centro-esquerda, que jamais falaram de conflitos de interesses e se preocuparam apenas em consolidar bunkers de apoiadores. Ouvi atentamente os discursos e intervenções dos ditos centro-esquerdistas (a esquerda aparece aí como um penduricalho decorativo). Em nenhum deles se falava em luta de classes, disputa de espaços de poder fora das negociações por cima, organização popular para pressionar as torres defendidas da classe dominante. Como se tudo se resumisse a trocas de favores acertados em salas confortáveis. É a perdigoto-política.
O país real que emergiu das urnas foi tratado a golpes de memes, xingamentos e ironias variadas, sem qualquer aprofundamento dos modos e razões que levaram um fascistoide, candidato a tirano, medíocre e ignorante ex-capitão a tornar-se presidente. Que não me venham com a falácia de que, hoje, o país acordou descobrindo que tem mais de 50 milhões de fascistas. Essa gororoba pueril pode servir para aplacar a frustração, a depressão e a sensação de impotência, mas não avança um milímetro na direção do entendimento indispensável para reverter o quadro.
Falta à esquerda uma análise consistente de, ao menos, dois fenômenos relativamente recentes. O primeiro são as novas tecnologias digitais e seus efeitos na formação de opinião e de (des)organização social. O outro é a ascensão dos evangélicos no espaço da política. Reproduzo trecho de artigo da jornalista Anna Virgínia Balloussier: “Evangélicos triplicaram de tamanho na população, mas a esquerda ainda não aprendeu a falar a língua deles, diz o sociólogo Paul Freston, referência nos estudos sobre o neopentecostalismo nacional”. Por enquanto, há escassas tentativas de diálogo com esse segmento, rotulado (e cada um de nós certamente já ouviu muito isso) como manada de seguidores de pastores inescrupulosos.
Parece muito claro que a extrema-direita, com seus corvos de penugens levemente variáveis, veio para ficar. Não mais como fenômeno exótico, mas como protagonista da vida política e social. Ainda não tem um partido de massas, nem uma liderança que vá além do histrionismo e da vulgaridade de um Bolsonaro. No entanto, e a História ensina tragicamente, as condições objetivas da luta de classes podem fazê-los surgir. Não adianta espernear e praguejar. É preciso preparar-se para um combate difícil e de longa duração.
No terreno das relações pessoais, o estrago é enorme. Desde 2018, muitos afetos foram destruídos pelo clima político. Compreendo a impossibilidade de conciliação com arroubos fascistas, mas vi e ouvi falar de rupturas que partiram de suposições, sem dar chance a uma conversa, a uma troca de divergências, a uma convivência mantidas diferenças importantes. Houve uma chuva de bile, que fertilizou rancores originados em outras paragens.
Na eleição presidencial, nada está perdido. Há um segundo turno, que, seguramente, será precedido por uma campanha violenta, agressiva. Mesmo que vença, o companheiro ex-metalúrgico terá pela frente um governo travado por uma oposição parlamentar hostil. Terá coragem de convocar a população para ir às ruas pressionar congressistas? Não acredito, está no DNA do Lula a conciliação, a acomodação de interesses, que, no caso do Brasil, são ditados pela burguesia. Teremos mais do mesmo, com a diferença importante de revalorização da cultura, da defesa do meio ambiente, da civilidade no espaço público.
Mais do que nunca, sinto falta de uma esquerda forte. Não dessa esquerda que o velho Gregório Bezerra chamava de “esquerda flor-de-laranjeira”, mas da que aponta para um outro tipo de organização social, emancipando o homem da escravidão do capital.
Abraço. E muita coragem.