“Já está escrito, já está previsto
Por todas as videntes, pelas cartomantes
Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias
Ahhhhhhh
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada”
(Ivan Lins)
Era uma viagem um pouco longa. O taxista, para mim um senhor (deveria ter minha idade na época) começou a puxar conversa. Dei corda e lá pelas tantas estávamos falando de tarô, baralho cigano e outras artes divinatórias. E foi então que ele me contou uma história deliciosa. Ele queria se casar, juntou um dinheiro e foi até o Catete, local onde ficava o famoso cinema Azteca e virou uma galeria. Lá comprou um par de alianças. Porém, antes de pedir a moça em casamento, achou por bem consultar uma cartomante e vidente. Chegando na mulher, em bairro afastado do Rio, falou que queria pedir a mão da namorada, mas antes queria consultá-la. A mulher pediu as alianças, que ele levava numa caixinha de veludo sem nada escrito. Fechou os olhos, meio em transe, perguntou: ” Essa moça é estrangeira ?” Diante de sua negativa, falou: ”Porque estou vendo algo relacionado com os astecas”. Sim, o nome da galeria que ele adquiriu as alianças. E completou: ”Vai sem medo menino, essa moça vai te fazer muito bem”. Ele boquiaberto, impressionado com a história do Azteka, seguiu o conselho da mulher. E me disse orgulhoso: Vinte cinco anos juntos e felizes!
Segundo os antigos gregos, nossas vidas estão nas mãos das Moiras, filhas de Nix, a deusa da noite. Elas são as tecelãs de nossos destinos. Cloto, engendra o fio da vida, Láquesis, puxa e fia a nossa história e cabe a Átropos, cortar o final. É uma ideia de um destino preconcebido, em que nascemos com um caminho determinado. Cabia a um oráculo tentar mostrar as surpresas dessa estrada, talvez barganhar, para tentar um pouco mais de tempo na Terra. As Moiras estão acima dos deuses. Do jeito que encontramos cartazes por aí prometendo a volta de um amor em três dias (via de regra querem sempre um embuste de volta, afinal, segundo o grande filósofo Hegel: ”figurinha repetida não completa álbum”) , baralhos ciganos, tarot e outras artes divinatórias, o brasileiro muito acredita nisso. O esporte aqui é passar a perna nas Moiras. Até nelas, três simples costureiras, enfiadas num subterrâneo, idosas, vivendo insalubramente como escrava boliviana em fábrica de confecções em São Paulo. Todo mundo sonhando em dar um golpe nas véias.Em vão, porque chegou a hora não tem para onde fugir.
Ao contrário dos meus compatriotas, nunca estive numa cartomante. Mas vivo coisas estranhas que parecem trama do destino. Recém-chegada no mestrado, meninota de vinte e poucos anos, numa turma que a maioria já era bem mais velha e tinha experiência em sala de aula, fui acolhida por uma mulher com uns 20 anos a mais que eu. Icleia, era seu nome. Ela, na década de setenta, havia estudado com todos os nossos professores, inclusive estava de volta ao mestrado pela segunda vez. No primeiro, já terminando os créditos e se preparando para escrever a dissertação, tomou-se de amores por um francês e largou tudo para viver em Paris. O que a fez gostar de mim foi que no dia da prova eu estava com uma saia indiana, cheia de colares e ela lembrou do tempo que era jovem. Achou interessante uma moça de outra geração estar vestida com roupas setentonas. E foi se aproximando. Com ela aprendi todos os códigos velados que regem a academia, soube também de todas as fofocas de bastidores que envolviam seus antigos colegas de classe, agora nossos professores. E nos tornamos muito amigas, apesar da diferença de idade. Um dia Icleia me ligou e perguntou: ”Céu, seu pai por um acaso foi aluno da Georgina Albuquerque ?” Eu realmente não sabia, aliás nem sabia quem era essa senhora, então aproveitar o ensejo e falar um pouco sobre ela. Nascida em 1885, Georgina foi a primeira brasileira a se matricular na Escoa Nacional Superior de Belas Artes em Paris. Foi a primeira mulher brasileira a se firmar como artista internacionalmente, antes de 22. Suas pinturas são fortemente influenciadas pelas técnicas pictóricas do Impressionismo, foi também a primeira mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes. É considerada pioneira em vários ramos da arte. Abriu uma escola de desenhos para crianças talentosas e sim, meu pai foi seu aluno.
Ao responder que sim, a história tomou corpo. A irmã da Icleia trabalhava no Arquivo Municipal e muitos anos atrás, ao receber trabalhos de ex-alunos da pintora, encantou-se com uma aquarela. Pensou em emoldurar, mas o tempo foi passando. Um dia que Icleia estava na casa dela, tiveram que procurar um documento do pai, a irmã achou a pintura, mostrando a beleza e falando que estava guardado há anos para emoldurar. Foi aí que Icleia viu a assinatura L.C.Bahiense, 8 anos de idade. Sobrenome igual, não custa perguntar. E sim, era uma aquarela pintada por ele. Peguei de volta, coloquei numa moldura e não sei nem falar da emoção que meu pai teve. Era o homem de mais de 60 anos frente ao menino de 8.É uma loucura imaginar os caminhos tortuosos que esse desenho fez para, finalmente, voltar ás suas mãos.
Eu sou aquela que não acredita em nada mas acredita em tudo. Tomo banho de pipoca de Omulu, mando meu nome para grupos de orações das mais variadas crenças, porque mal não faz. Sobre a cartomancia, o assunto inicial, existem várias teorias sobre seu surgimento. Segundo a antropóloga Gloria Prado, a arte foi levada para a Europa pelos Cruzados e assim chegou na Península Ibérica: “Esses povos já utilizavam, no século 12, as cartas para fazer previsões, parecidas com as de hoje”. Pouco se sabe realmente sobre a sua origem. Há quem diga que surgiu na China e foi trazida ao Ocidente pelos ciganos. Os historiadores concordam e reconhecem que não foi uma invenção casual. Para o professor de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, Sávio Antunes “Existem diversas influências sobre essa arte mística, sua origem pode ser bem mais antiga do que se sabe até hoje”.
Acredito que meu primeiro apreço por cartomantes foi pela que dá o título ao conto do Machado de Assis. Meu pai leu para mim em voz alta, quando eu ainda estava começando a ligar as letras e mesmo sem entender muito bem, fiquei muito impressionada. A figura altiva de uma italiana magra, alta, de olhos grandes, sonsos e agudos, que acalma Camilo com a frase: — Vá,vá, ragazzo innamorato, enquanto com seus dentes brancos comia uma tigela de passas, ficou bem marcada na minha cabeça. Isso me faz lembrar que tem tantos estudos profundos sobre esse conto, enquanto minha filha assim resumiu o enredo: ”A história de um corno que não sabia escolher amigos”. Machadinho, perdoe essa infanta.
Outra obra da literatura brasileira e que ao ser transformada em filme ficou tão maravilhosa quanto, é A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Macabeia, nordestina, órfã, feia, que tomava aspirina para ver se curava a dor que tinha dentro dela, sem saber que era angústia. Ouvia rádio relógio, tomava café frio, uma pessoa tão tola, segundo a autora “que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”. Invisível como tantas pessoas nesse Brasil, sozinha num Rio de Janeiro que tritura almas. Ficou trabalhando como datilógrafa, mesmo não sabendo direito o ofício, por pena do chefe. E quando pensava em si, era: ”sou datilógrafa, virgem e gosto de coca-cola”. Seu envolvimento com o operário do sertão da Paraíba, Olímpico, e a falta de jeito dela, quando ao faltar assunto se vê em frente a uma loja de ferragens e diz: ”Eu adoro prego e parafuso, e você”, é de uma candura ímpar. O tal pretendente acaba sendo roubado pela colega loira e bem fornida do trabalho. Resta a Macabeia procurar uma cartomante. Dessa vez uma ex-cafetina, D.Carlota, interpretada magistralmente por Fernanda Montenegro. Macabeia queria saber o que podia esperar do futuro, já que do presente não dava para aguardar nada e tem como resposta que vai ao seu encontro um homem rico, bonito, glamouroso. Ao sair, é atropelada por uma Mercedez. Único momento em quem teve atenção de alguém na vida, pois como disse o narrador: “Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes”
O elenco do filme inteiro é afiado, a direção da Suzana Amaral é primorosa, Marcelia Cartaxo foi a decisão certa para interpretar a Macabeia e o Olímpico de José Dumont é absurdo de bom. Na cena que ele carrega um grande urso de pelúcia, para dar para a mulher que apenas o usou, andando com aquele trambolho pelas ruas do Rio de Janeiro, é fabulosa. Estou tão triste com a história dele guardar material de pedofilia e ter pagado a uma criança de 12 anos para fazer sexo, que sério, se ele tivesse morrido minha dor seria menor. Mas, como diria Madame Zoraide: Nunca confunda a pessoa física com a pessoa jurídica. É isso.