Foi meu primeiro estágio pra valer. Já nos estertores do curso de engenharia química, passei por um processo seletivo light e caí de paraquedas numa firma de projetos de engenharia. Passada a excitação da novidade, veio o estranhamento. Profundo, decepcionante. A rotina lembrava cenas chaplinianas em Tempos modernos, o homem como apêndice indefeso do processo de produção. Vigiado, destituído de vontade própria, neurotizado.
O lugar todo parecia um grande aquário. Divisórias transparentes, impossibilitando qualquer privacidade. A sensação, angustiante. Um pesadelo orwelliano. Vou dar um exemplo do comportamento capataz. O intervalo para almoço começava pouco antes do meio-dia. Eu corria para um restaurante modesto, onde se comia sentado em tamboretes. O prato de resistência era o Chicken pie de frango(!). Assim mesmo no cardápio. Engolido às pressas, hora de voltar para o aquário, a tempo, achava eu, de folhear um jornal até as 13 horas. Não demorou muito e o chefe do setor me chamou. O olho do Big Brother não falhava. Faça o favor de largar o jornal às 12:45 horas, disse, é o início do expediente da tarde. Involuntariamente, eu me apropriava de um tempo que pertencia aos patrões. La vida es eterna/En cinco minutos/Suena la sirena/De vuelta al trabajo, poetou Victor Jara. Quinze minutos, três vidas. Aonde a mais-valia foi parar, seu Valdemar?
As atividades eram controladas diariamente. Cada robô, digo, trabalhador, era obrigado a fazer um relatório diário, especificando, com minúcia, o que havia feito. Em nome de uma engorda no currículo, aguentei a situação por meio ano. Ao sair do aquário pela última vez, nem olhei para trás. Sardinha não tem saudade dos tubarões. Mal sabia eu que o próximo passo seria na direção de um empresário picareta, arrogante, montado em esquemas para se apropriar de recursos públicos. Mas isso já é outra história.
Essas lembranças quase apagadas, gravadas em preto e branco, vieram à tona depois da divulgação de matéria do New York Times, sobre monitoramento de trabalhadores (colaboradores é o cacete!) em escritórios. Logo na introdução, o jornalista observa que “desde o surgimento dos escritórios modernos, os trabalhadores orquestram suas ações observando o relógio. Agora, cada vez mais, o relógio os observa”. Bem, não se trata exatamente do relógio. Em número crescente, funcionários, em trabalho remoto ou ao vivo, estão sujeitos a rastreadores. Quem o dispositivo flagrar desconectado do computador está sujeito a corte de salário ou, no limite, a perda do emprego.
Trabalhadora de uma grande multinacional contou que “enquanto o rastreador estava ligado, não podíamos escolher o momento de ir ao banheiro ou tomar um café”. Se o funcionário estiver apenas pensando (apenas?) no momento em que é monitorado, isso é interpretado como tempo ocioso e descontado do salário.
Na transição histórica entre trabalho artesanal e produção industrial, o trabalhador perdeu o controle não apenas dos meios de produção, mas do tempo dedicado ao processo produtivo. Sua habilidade manual foi transferida para as tarefas repetitivas das máquinas, seu tempo passava a pertencer ao capitalista. Com o aperfeiçoamento das máquinas e a sofisticação do mundo digital, os controles estão cada vez mais severos. O grau de liberdade de quem trabalha desidrata. O sonho de consumo do capital é tornar o homem-trabalhador obsoleto, substituído por geringonças que controlam cada detalhe da vida e não reclamam de sobrecargas variadas.
Sem surpresa, começam a aparecer os primeiros sinais de que máquinas podem aprender, isto é, ganhar “personalidade”, expressar desejos, criar com autonomia. Já existe um programa de computador que aprendeu a jogar Go, um jogo chinês de aparência simples, mas de desenvolvimento complexo. Não só ficou imbatível, como transitou para o xadrez e outros jogos, nos quais vence qualquer humano. Existem algoritmos que compõem músicas adaptadas a estilos diferentes. Não sei a qualidade destas composições, mas a perspectiva é de que elas ganhem sonoridades e soluções técnicas cada vez mais indistinguíveis das elaboradas pelo Homo sapiens. O horizonte de tudo isso, inclusive com a fusão de biologia e máquinas, corpo e mecanismos, é improjetável.
O aquário onde nadei aflito na alvorada profissional é um pequeno Éden comparado ao que vem por aí.
Abraço. E coragem.