Grande parte das dificuldades pelas quais passa o mundo tem uma explicação: os ignorantes são taxativos e os inteligentes, cheios de dúvidas (Bertrand Russell)

Parece que os liberais andam perturbando meu sono. Semana passada, num esforço de reportagem, dialoguei nesse espaço com um ilustre membro brasileiro da tribo dos que falam em liberdades abstratas e mercados livres, leves, soltos e agenciadores do que seria o melhor em organização social. Hoje, confesso que levemente entediado, volto ao tema.

Mario Vargas Llosa não é qualquer um. Ganhador de um prêmio Nobel de literatura, o peruano tem vasto cartel de livros publicados. Não tenho como avaliar-lhe a obra, da qual conheço pouquíssimo. Outro Mario, o Benedetti, uruguaio que admiro e respeito, considerava Llosa um bom escritor e merece ser lido. Acompanho o relator. O caldo engrossa, no entanto, quando o peruano sai da ficção e cacareja sobre política e seus personagens.

Ao longo dos anos, Llosa, atracado no credo liberal, derramou elogios a Reagan, Thatcher e, recentemente, José Antonio Kast, candidato pinochetista à presidência do Chile. A ele jamais importou o caráter autoritário/ditatorial de um dirigente, desde que não mexesse na liberdade de movimento do capital e nas leis sagradas da propriedade privada dos meios de produção. Até aí, acompanhávamos, nauseados mas à distância, os maus rumos de um intelectual. Não mexia no nosso quintal. Até que…

Em meados deste mês, a Folha de S. Paulo publicou extensa entrevista com Llosa. Provocado pelo entrevistador, ele falou sobre conjuntura política brasileira. Concedendo apenas que não tem simpatia por Bolsonaro e criticando a postura negacionista do presidente sobre vacinas, não deixa dúvidas de que votaria na Peste se o adversário fosse Lula. “Tem uma certa vocação para palhaçada”, “É um palhaço no fundo”, “Não é muito sério”, comentou sobre o Salnorabo, como se as “palhaçadas” não tivessem consequências, como se elas fossem meras irreverências juvenis, inofensivas e, no limite, perdoáveis e dignas de simpatia. Quase um maluco beleza, garoto levado mas adorável.

Na primeira leitura, associei “palhaçadas” com doces personagens do Menino. Carequinha, Arrelia e, numa expansão do conceito, Oscarito. Imagens que rapidamente se dissiparam, substituídas por Pennywise, sinistro palhaço de It, e o Coringa psicopata, interpretado pelo Heath Ledger. Destes, só se pode esperar violência extrema, desprezo absoluto por regras elementares de convivência, pesadelos mórbidos.

Sabemos muito bem, e não pela boca de um intelectual fundamentalista, o que significa o Palhaço Vociferante de Brasília. Numa América Latina manchada pelo sangue dos povos originários, herdeira de colonos genocidas, o governo brasileiro favorece a ação ilegal de garimpeiros em terras indígenas. Uma antropóloga relata o clima de tensão nas áreas onde vivem os indígenas: “A violência relembra os períodos em que os índios eram caçados por bugreiros, bandeirantes e escravagistas”. Na cultura e na educação, no respeito às opções sexuais, no direito a não morrer de fome e de desalento, no armamento descontrolado de setores da população, tudo é de uma devastação estarrecedora. A República afunda num mar de vulgaridades, mentira e cinismo, o prêmio Nobel só consegue enxergar gargalhadas.

As sandices de Llosa vêm de longe. Já na década de 1980, ele acusou os intelectuais de Terceiro Mundo (expressão hoje em desuso, mas comum na época) e sobretudo da América Latina de serem “elementos fundamentais do subdesenvolvimento (…) Propagadores de estereótipos, obstruem qualquer possibilidade de criação de novas formas de libertação”. Mereceu uma resposta irônica do seu xará Benedetti: “Sabemos agora que o subdesenvolvimento não é uma consequência do imperialismo, nem das intocáveis multinacionais, nem do analfabetismo generalizado, mas dos alfabetizados e malignos intelectuais (…) Neruda e Carpentier são mais culpados pelas nossas desgraças do que a United Fruit ou a Anaconda Copper Mining”.

Tudo isso reivindica um velho debate. É possível separar o homem, com suas opiniões e circunstâncias, do artista, do criador? Um exemplo clássico é Richard Wagner. Foi um antissemita abjeto, mas sua obra musical e suas concepções cenográficas para a ópera representaram uma revolução, que não pode, nem deve, ser ignorada. O mesmo vale para Vargas Llosa. No campo literário, parece que é como Paris: vale uma missa. Nas concepções políticas, representa o que há de mais atrasado, retrógrado. Contra elas, não sugiro golpe abaixo da cintura ou botinada na canela. Melhor apresentar nossas ideias e argumentos. É assim que se educa e se avança.

Abraço. E coragem