Prezado Helio Beltrão,

Costumo ler esporadicamente seus artigos semanais na Folha de S. Paulo. Faço questão de conhecer as opiniões de quem divirjo e seus textos são um banquete para isso. Você é presidente do Instituto Mises Brasil, incubadora do pensamento dito liberal, que defende “o livre mercado e uma sociedade livre”. Não faço a menor ideia do que seja “livre mercado” na era do capitalismo globalizado e tenho dificuldade em visualizar quem é livre nas sociedades que admitem como naturais desigualdades socioeconômicas obscenas.

Li seu artigo Uma carta eleitoreira, publicada no dia 3 de agosto. Nele, você acusa de oportunista/eleitoreiro o documento gerado na Faculdade de Direito da USP, que defende o Estado Democrático de Direito em reação às agressões continuadas do presidente Bolsonaro às urnas eletrônicas. O documento já conta com mais de 1 milhão de adesões, vindas de todos os cantos do país, representando múltiplos segmentos da sociedade. Uma rara unidade em ambiente notoriamente polarizado.

Sua argumentação é, para dizer o mínimo, inusitada. Diria mesmo que sugere um bolsonarismo que não se assume como tal. Para quem não te leu, divido os argumentos em duas partes.

Na primeira, você duvida das más intenções da Besta em relação às urnas eletrônicas. Textualmente: “Discursos supostamente subversivos do presidente Jair Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas, bem como especulações de que incitará a turba e aplicará um golpe de Estado caso perca as eleições”. Supostamente? Especulações sobre golpe? Não passa dia sem que o Desprezível deixe de afirmar, sem nunca ter apresentado prova ou sequer evidência, que as urnas eletrônicas são vulneráveis à fraude. Para ficar em dois exemplos. Ele disse que é na sala-cofre do Tribunal Superior Eleitoral, maliciosamente chamada de “secreta”, que se decide quem vai ganhar as eleições. Prova disso? Pelo menos um indício sugestivo? Neca de pitibiribas. No 7 de setembro do ano passado, num palanque histérico, ele berrou que só sairia da presidência por vontade de Deus, morto ou preso. Ou seja: reconhecia publicamente que voto não seria meio legítimo para tirá-lo do Planalto.

Na segunda, Trump aparece como vítima de uma acusação da esquerda americana (!) de que teria tentado um golpe. Inacreditável que ainda haja alguém que, apesar da profusão de sons e imagens da invasão do Capitólio e da fartura de evidências coletadas pela comissão que investiga a invasão, duvide do que pretendia Trump. É bom lembrar que o ex-presidente americano também começou a atacar o processo eleitoral muito antes dele acontecer. Bolsonaro já deu a senha faz tempo: o Topete Laranja é seu modelo. Para a quebra da institucionalidade tenta arrastar as Forças Armadas, parte das quais ouviu o canto da sereia.

Você não dedica uma única linha para criticar a ruína do país na gestão bolsonarista, liderada por um mentiroso compulsivo, defensor de tortura, homofóbico assumido, machista juramentado, promíscuo violador da separação religião-Estado e medíocre “analista” do país. Em contrapartida, dedica-se a atacar o que considera ameaças à democracia durante os governos do PT. Tenho muitos reparos a fazer à companheirada. Todos, no entanto, por um olhar de esquerda, sem o moralismo udenista tão caro ao “mercado” e seus barões. Em nenhum momento, e até os liberais honestos reconhecem, houve o clima de terrorismo cultural, ataques sistemáticos a jornalistas, divulgação patológica de informações falsas, desrespeito à independência dos poderes, que viraram, desde 2019, nosso feijão-com-arroz cotidiano.

Finalmente, tenho curiosidade em saber o que pensa um legítimo misesiano sobre que tipo de liberdade concreta há num país que tem 20% da população consumindo sobras de carne, quase 20 milhões de pobres nas metrópoles, 33 milhões de famintos, mais de 150 milhões de pessoas em situação de fragilidade alimentar. Será que o “livre mercado”, o que quer que seja isso, resolve estas aberrações? Será que os “libertários do mercado” concordam com o livre trânsito do vandalismo ambiental, que destruiu, em 2021, 18 árvores por segundo na Amazônia? De que forma justificam seu silêncio frente ao armamento acelerado da população, aos cortes megatônicos dos orçamentos do ensino público e das instituições de pesquisa, às tentativas de asfixiar o pluralismo das manifestações culturais e religiosas?

Talvez, quem sabe, você tenha razão e a carta que veio da USP e se espalhou pelo país seja mesmo eleitoreira. Ela foi eleita por todos os que não ficaram cegos, surdos e mudos frente ao esquadrão celerado que tenta, a olho nu, continuar, através de um golpe, a obra nefasta de destruir o país. Sua falsa neutralidade, senhor Beltrão, tem pernas curtas. Ao dar crédito ao Sete Peles, você avaliza um projeto que dilata, sim, os mercados, mas da miséria, da censura, das arbitrariedades, dos privilégios de classe, da violência. Será este, afinal, o “livre mercado” defendido pelo instituto que você preside?