A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente (Rosa Luxemburgo)
Tenho pensado no Max Yasgur. Por que será? O que tinha de especial este filho de imigrantes judeus russos, proprietário de uma fazenda nas proximidades de Bethel, estado de New York, produtor de leite e derivados? Republicano, defendia a guerra do Vietnã. Apesar disso, recebeu com simpatia os organizadores do que viria a ser um dos marcos da minha geração.
Max alugou parte de seu terreno para a realização do Festival de Woodstock, em agosto de 1969, que exibiu artistas claramente antiguerra, como Jimi Hendrix (a execução do hino norte-americano, com efeitos de guitarra que simulavam bombas, metralhadoras e gritos de desespero, virou um clássico), Joan Baez, Country Joe McDonald e Arlo Guthrie. Vizinhos, preocupados com a presença de “milhares de hippies”, reagiram exortando a um boicote aos produtos de Max, que não se intimidou.
Até aqui, apenas uma história. Continua a dúvida: por que o fantasma de Max Yosgur desembarcou nos meus pensamentos? Acho que não se trata apenas de evocar o dono de terras que viraram solo sagrado na história do rock. Ele teve, essa a chave explicativa, uma atitude que, vista hoje, nos solavancos da intolerância no debate de ideias, parece inverossímil. Como pode um sujeito acolher tanta gente que defende posturas, estilos de vida e visões de sociedade tão diferentes das dele? Com Max, podia. Ele não apenas recebeu a multidão de jovens que ia viver “três dias de paz e música”, mas, ao perceber que a comida tinha acabado logo no segundo dia do festival, doou todo o seu estoque de leite e iogurte para os famintos. Nunca tinha sequer visto um baseado, se pudesse pegaria em armas para combater os comunas de olhinhos puxados, mas lá estava, convivendo com os diferentes, falando com eles (o pequeno discurso que fez no palco do festival é uma pérola). Isso deve significar alguma coisa.
Consigo pensar em, pelo menos, dois casos brasileiros em que o conservadorismo de uns não impediu o contato com o progressismo de outros. O primeiro vem do advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto. O doutor Sobral. O Senhor Justiça. Durante a ditadura do Estado Novo, ele, católico, conservador e abertamente anticomunista (em 1964, apoiou o golpe contra Jango), defendeu com empenho os comunistas Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, presos em isolamento total. Berger foi barbaramente torturado na prisão pelos esbirros de Filinto Müller. A peça de defesa, inusitada, apelou para a Lei de Proteção aos Animais. “Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia”.
O outro caso vem também da década de 1930 e se refere à BIBSA – Biblioteca Scholem Aleichem, entidade judaica progressista localizada na antiga Praça Onze. Os ativistas da biblioteca, que funcionava como centro social e cultural, eram constantemente vigiados pela polícia política do ditador Vargas. Naquelas circunstâncias, pertencer à diretoria da entidade era um risco nada desprezível. Eis que surgiu Saádio Lozinsky. Religioso fervoroso, sem nenhum verniz progressista, mas consciente do papel agregador da BIBSA, aceitou presidi-la. Cansou de ser convocado pela repressão para “prestar esclarecimentos”. Usava de paciência para driblar o peso da censura e manter as atividades da biblioteca.
Houve um episódio pitoresco envolvendo Lozinsky e Prestes. Ele foi narrado por Abraham Josef Schneider (Boletim ASA número 48, setembro/outubro de 1997). “Certo dia, Lozinsky manifestou desejo de, pessoalmente, homenagear Luiz Carlos Prestes, a quem eu já conhecia por ter confeccionado dois ternos que seriam usados pelo Cavaleiro da Esperança, eleito senador da República após o Estado Novo. Na condição de secretário da BIBSA, marquei um encontro na casa de uma pessoa amiga, onde Prestes teria uma grande surpresa. Lozinsky havia traduzido trechos dos Salmos, que leu após colocar a quipá na cabeça do líder comunista. Em seguida, visivelmente emocionado, ergueu as duas mãos, abençoando-o. Prestes, ateu convicto, e Lozinsky, homem extremamente religioso. Naquele momento inesquecível, prevaleceu o respeito entre duas pessoas de valor inquestionável que, de formas diferentes, sonhavam com uma sociedade justa e fraterna”.
Recupero estes fatos como instrumento para lembrar que o diálogo entre diferentes é não só possível, mas enriquecedor. Nem todos os conservadores são brucutus insensíveis, nem todos os progressistas são impecáveis democratas, infalíveis portadores do futuro. Os caminhos para o diálogo foram corrompidos por uma concepção equivocada: a de que adversários políticos devem ser cancelados, deletados, incinerados. Na melhor das hipóteses, ignorados. Claro que não me refiro aos fascistas, por natureza inconversáveis, mas aos conservadores esclarecidos. Lembro do saudoso Leandro Konder. Ainda no tempo áspero da ditadura, ele sugeriu publicamente, nas páginas do JB, um debate sobre O Capital, de Marx, com os economistas do regime (Simonsen, Delfim, Campos). Claro que o desafio não foi aceito, mas lá estava o caminho correto. Debate entre iguais costuma adernar para o monólogo. Um bocejo.
Abraço. E coragem.