No dia 27 de novembro de 1095, durante o Concílio de Clermont-Ferrand, o Papa Urbano II convocou a cristandade para o que ficou conhecido como a Primeira Cruzada. Tratava-se de organizar expedições militares para expulsar os muçulmanos que ocupavam Jerusalém e liberar o túmulo de Cristo. “Deus o quer”, disse o Papa.

Multidões abandonaram pertences e famílias e se dirigiram a Jerusalém, ungidas como “vingadores de Deus” e encarregadas de varrer os infiéis. No caminho, e é bom lembrar que aquele era um tempo de comunicações precárias, religiosos de pés descalços interpretaram à sua maneira as palavras de Urbano II e começaram a pregar o ódio contra todos os infiéis, ou seja, os não-cristãos. Cronistas da época relatam massacres de judeus que se recusavam a converter-se ao cristianismo. Ricardo de Poitiers, por exemplo, escreveu: “Os cruzados exterminaram em numerosos massacres os judeus em quase toda a Gália, à exceção daqueles que aceitaram a conversão. Diziam, com efeito, que era injusto deixar viver em sua pátria os inimigos de Cristo, já que haviam pegado em armas para expulsar os infiéis”.

O abade francês Pedro de Cluny repercutiu assim o ódio contra os “infiéis”: “De que serve ir ao fim do mundo, com grande perda de homens e dinheiro, para combater os sarracenos, quando deixamos permanecer entre nós outros infiéis que são mil vezes mais culpados em relação a Cristo do que os maometanos?”.

No fim das contas, acabava sendo um discurso que atravessou os tempos: a luta do Bem contra o Mal, sendo o Mal tudo que não coincide com determinada e arbitrária concepção de vida, religião, modo de organizar a sociedade. O Mal se converte, num processo inexorável, em abominação absoluta que deve ser exterminada. Tudo começa com a desumanização do Outro, evolui para a exaltação das massas e termina com a entronização da Morte. Com o Mal, repetiram tiranos, espertos e oportunistas de coturno variado séculos afora, não há diálogo possível.

Para ficar em poucos exemplos sobre o Mal absoluto, cito três acontecimentos marcantes do século XX. Em todos, o comunismo foi transformado em caricatura e serviu como fachada fraudulenta para o fortalecimento dos poderosos de ocasião. Em fevereiro de 1933, o Reichstag foi queimado criminosamente. Hitler acusou os comunistas pelo incêndio, abrindo caminho para sedimentar entre os alemães a imagem dos “ardilosos e antigermânicos vermelhos”. O PC alemão, que tinha força eleitoral e penetração popular, foi abatido por perseguições ferozes e acabou proscrito. Os comunistas alemães, ombreados aos judeus, foram transformados no Mal absoluto que devia ser eliminado.

Pulando algumas décadas, vamos para a Indonésia. Em 1965 e 1966, sob o manto do anticomunismo, militares e bandos civis mataram cerca de 1 milhão de pessoas. Vários milhões foram presos, torturados e levados para campos de concentração. Os assassinos tiveram apoio ostensivo dos Estados Unidos, com olho gordo no petróleo indonésio. Os massacres foram facilitados pela propaganda oficial, que mostrava os comunistas como seres desprovidos de humanidade. Novamente a fantasia do Mal absoluto, aqui transformando o que deveria ser luta política em guerra de extermínio.

O que dizer do macartismo, nos anos 1950? O Comitê para Investigação de Atividades Antiamericanas no senado norte-americano denunciou milhares de cidadãos, acusando-os de comunismo ou simpatia por ele. Encarnação do Mal absoluto. Muitos foram demitidos e banidos de sua atividade profissional, especialmente na área artística. Assistidas hoje, as imagens do senador Joseph McCarthy, fanfarrão medíocre no papel de Torquemada, parecem ridículas, mas significaram a destruição de muitas vidas.

Criminoso não é somente quem aperta o gatilho, desembainha a peixeira ou desfere socos megatônicos. Os que estimulam a violência por palavras e/ou omissão premeditada são igualmente culpados. O discurso de ódio do atual presidente da República, que não se cansa de repetir que estamos em plena luta do Bem contra o Mal, amplia o espaço para que todo tipo de fanático e desequilibrado se sinta à vontade para descarregar seus instintos bestiais.

Quando, ao reagir ao assassinato de um militante do PT em Foz do Iguaçu por um bolsonarista, o presidente pergunta “O que eu tenho a ver com esse episódio?”, a resposta é simples: tudo. Reconheço que não deve ser fácil para alguém com claro déficit neuronal e civilizatório compreender esse tipo de situação. O Parasita Esquizoide não consegue entender como sua retórica violenta produz violência. Finge desconhecer que seus mais de 20 atos que facilitam a compra e posse de armas, seus elogios à ditadura e à tortura, sua absoluta incapacidade de reconhecer a legitimidade das diferenças, seu destempero recorrente contra instituições democráticas, acabam naturalizando ideias e palavras intolerantes. Daí para o ato violento a distância fica cada vez menor. Palavras, reconheça ou não o Obtuso Mor, produzem consequências.

Comecei falando de Cruzada e termino retornando ao tema. Na recente Marcha para Jesus, o beócio clamou, novamente, por uma “guerra do Bem contra o Mal”. O apóstolo Estevam Hernandes, idealizador do evento, declarou, sem ruborizar, que seu ilustre convidado é um “homem escolhido por Deus”. Lembrei de imediato de uma ejaculação verbal do beócio, em 2017, dizendo que o Brasil é um Estado cristão e que ou as minorias se adequam a isso ou desaparecem. A promiscuidade entre religião e Estado, “Deus o quer”, levou a razzias assassinas contra judeus e não-cristãos no século XI. Aonde levará neste assustador século XXI?

Abraço. E coragem.