Rio 40 graus/Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos (Fernanda Abreu)
Meu caro Washington Olivetto,
A gente não se conhece. Sei de você através da notória paixão corintiana, de algumas crônicas semanais n’O Globo e de comerciais especialmente criativos produzidos para a Valisére (o primeiro sutiã a gente nunca esquece) e os da longa série que o Carlos Moreno interpretou para o Bom Bril. Tinha esse currículo na cabeça quando li seu texto O Rio de Janeiro continua lindo, publicado no dia 4 de julho. Queixo caído! Será mesmo que você acredita que seu filho foi “para o céu” ao visitar o Rio recentemente? Por acaso imagina que nós, cariocas, acordamos todos os dias e, sorriso no rosto e alma leve, caminhamos alegremente pela cidade? Quiçá não sabemos separar o descompromisso dos turistas VIP do cotidiano de quem mora aqui e não tem como fugir “para a vida real” em Londres?
Verdade, prezado Olivetto, que a natureza continua deslumbrante como sempre. As aves de rapina não conseguiram destruí-la. Garotinho, Sérgio Acho que Exagerei Cabral, Pezão, Crivella e Wilson Tiro na Cabecinha Witzel deixaram intactos o Jardim Botânico, a silhueta da orla marítima, o beijo do Sol no Oceano Atlântico, a Floresta da Tijuca, o Aterro do Flamengo. Legaram, no entanto, uma cidade ferida, com vísceras infeccionadas, povo cabisbaixo e um salve-se-quem-puder na ocupação dos espaços públicos. Longe da fantasia ultrapassada de Cidade Maravilhosa. Maravilha para quem, cara-pálida?
Desigualdade 1Seu filho frequentou o pequeno circuito gourmet dos restaurantes estrelados. Desses que até para ler o cardápio talvez seja necessário pagar couvert. Feliz do seu garoto, salve ele. Não têm a mesma sorte os 2,8 milhões de cidadãos fluminenses, a maior parte deles habitantes da capital, que passam fome. O que será que pensam sobre as belezas de uma cidade só acessíveis a uma minoria? Alguém de estômago vazio pode achar que o Rio continua lindo?
Menino espera comida lado de fora de restauranteNão conheço ninguém que ande despreocupado pelas ruas da cidade. Na Zona Sul, há em curso uma explosão de assaltos, praticados, não raro, com grande violência. Em outras áreas convive-se com arrastões. Regiões inteiras são dominadas por milicianos e outras modalidades de crime organizado. Pesquisa fresquinha mostrou que o risco de ser assassinado assombra 84% dos moradores. O governador atual bateu todos os recordes de chacinas em favelas, cujas vítimas são especialmente negros. By the way: cerca de 20% da população moram em favelas. A miséria se alastra furiosa e, com ela, aumenta o número de pessoas que moram nas ruas e sobrevivem de esmolas e restos de comida. A manutenção deficiente dos equipamentos urbanos transforma calçadas em armadilhas perigosas, paraíso de ortopedistas e pânico de emergências hospitalares.
Seu filho e amigos aproveitaram a famosa feijoada da tia Surica e se deliciaram com o samba ao redor. Ótimo. Para ter uma experiência gastronômico-musical completa, no entanto, precisariam dar um pulo nos famigerados circuitos de bares que se espalharam como praga pela cidade. O barulho insuportável que provocam frequentadores e “músicos” que gravitam em torno deles guilhotinam o direito ao descanso de muitos milhares de cariocas. Ante a mais absoluta indiferença do poder público, pendurado no mito do carioca gente boa, feliz e festeiro.
Constatei aliviado que a excursão filial terminou o passeio ilesa. Mesmo destino não tiveram os adolescentes e crianças vítimas de balas perdidas, triste rotina na cidade. Só no ano passado, foram sete menores mortos dessa maneira.
Com tudo isso, fica difícil concordar com o que disse seu filho ao final da experiência carioca: “Fizemos um curso de pós-graduação de vida”. Como dizia aquele personagem de um programa humorístico, há controvérsias. Da minha parte, acho que ele fez apenas um curso introdutório ao estilo de vida dos ricos e candidatos à riqueza. Com tapumes convenientes, reais ou simbólicos, segregando imagens e pessoas que, afinal de contas, constituem a imensa maioria da população. Invisíveis aos olhos das castas privilegiadas. Vida é espelho multifacetado. Não sendo assim, é pura miragem de passageiros da ilusão.
Se me permite, faço uma sugestão. Recomende a seu filho que, da próxima vez que vier ao Rio, procure os focos de resistência à ruína que dilacera a cidade. Há muitos, como as várias galerias de arte que florescem nas favelas e periferias. Darão ao jovem herdeiro uma visão matizada da cidade que, hoje, perdeu o encanto e o glamour que você idealizou no seu artigo. Uma visão muito bem captada pela Fernanda Abreu, que citei logo no início dessa carta.
Um abraço. E coragem.