Um gosto de amora/comida com sol. A vida/chamava-se: ‘Agora’ (Guilherme de Almeida)

Politheama, Politheama/o povo clama por você/Politheama, Politheama/cultiva a fama de não perder. Assim começa o hino de um time de futebol, composto não pelo Lamartine Babo, responsável pelos hinos dos principais times do Rio. O compositor é Chico Buarque, dedicado ao time de peladas (acho que ele não gosta desse rótulo para um plantel de longa invencibilidade) que mantém com amigos há muitos anos. O pessoal brinca que o time joga por música, uma espécie de Real Madri slow motion.

O que pouca gente deve saber é a origem do Politheama. Ele nasceu como futebol de mesa ou, mais apropriadamente para minha memória ludopédica, jogo de botão. Chico é animado praticante dessa antiga simulação do “velho e violento esporte bretão”. Disse que, depois de algum tempo, os botões foram promovidos a seres humanos e o Politheama saiu da mesa de madeira, vestiu uniforme e chuteiras e adentrou o gramado na zona oeste carioca, aparado a capricho. Não sei se pelos mesmos bodes que fazem o serviço em Figueira de Melo.

Nesta época de idolatria dos jogos eletrônicos hiper-realistas, de dedos rápidos e neurônios escassos, pensava que o jogo de botão habitasse a galeria das espécies em avançado estado de extinção. Vai daí a surpresa quando li que um campeonato nacional da modalidade, reunindo mais de duzentos praticantes, acaba de acontecer em São Paulo. A turma viajou por conta própria e ninguém recebeu prêmio em dinheiro. Os vencedores ganharam modestos troféus, dignos de quem joga por amor à causa. E não se pense que eram apenas saudosistas de cabeleiras brancas ou calvícies avançadas, na eterna e inútil tentativa de desidratar o tempo vivido. Lá estavam jovens de 11 estados. Poucos, é verdade, com menos de 20 anos. Esses são da geração seduzida por telas e monitores, difícil largar deles. É o pessoal que vai aos estádios e, ao invés de se concentrar no campo, passa o tempo todo tirando selfies.

Já naveguei muito por esses mares. O Menino virou artesão instantâneo e aprendeu a lidar com cascas de coco seco, fichas plásticas de ônibus e cassinos, botões de roupas. Garimpava tampas de relógio e pequenas placas de chumbo para servir de peso aos heroicos goleiros de caixas de fósforos Fiat Lux. O time ia nascendo aos poucos, untado com cera de assoalho para deslizar melhor pelos gramados de taco ou compensado. Cada bolachinha redonda era o craque imaginário. Aquele, coco reluzente, rápido como o Germano, ponta-esquerda do Flamengo. Já esse outro, elegante, era o Carlinhos, meio-de-campo de fino trato. Acolá, o Jadir, zagueiro implacável, robusto quebrador de ossos.

Absorvi lentamente a introdução de novos materiais nos botões. Galalite e baquelite tinham produção em massa e muitos sucumbiram ao conforto da novidade. O time já vinha pronto para consumo. Resisti até o último perna de pau. Guardava o time principal numa pequena caixa de plástico, que se perdeu em alguma mudança. Na época, não senti muita falta. Era a fase de conclusão da adolescência, quando é comum se queimar pontes com a infância para confirmar a vereda adulta. O homenzinho que nascia, ritual de passagem, tinha que apagar o trajeto pueril. Hoje, gostaria de tocar novamente naqueles companheiros de viagem, que pari com o pouco que a vida me oferecia. Não dá. Paciência.

Em recente entrevista, Woody Allen confessou que já não tem prazer em filmar. Para ele, a experiência do cinema se esvaziou. Não se tratava apenas de assistir filmes, mas vivenciar uma experiência coletiva, que incluía saborear o escurinho da sala de projeção e compartilhar as impressões do que foi assistido com quem estava junto. Por outro lado, havia bons roteiros e ótimos diretores, sem uso exaustivo dos efeitos especiais e com intenções mais elevadas do que as fantasias infanto-juvenis. Pensar não era clamar por adrenalina e testosterona. Quando perguntado sobre quem gostaria de ter dirigido em sua longa carreira, 49 longas no currículo, citou apenas comediantes do passado. Tem saudade de outras épocas.

Compreendo Allen. Não se trata de querer de volta o pirulito de framboesa, de vestir calça curta e calçar Vulcabrás, de andar de lotação e bonde, de jogar bola ou búrica no terreno baldio. Creio que certas lembranças apenas evocam um tempo menos acelerado, em que havia menos abundância, mas a imaginação era expandida. Germano, Carlinhos e Jadir são símbolos desse tempo.

Abraço. E coragem.