“Capital do sangue quente do Brasil
Capital do sangue quente
Do melhor e do pior do Brasil
Cidade sangue quente
Maravilha mutante
O Rio é uma cidade de cidades misturadas
O Rio é uma cidade de cidades camufladas
Governos misturados, camuflados, paralelos
Sorrateiros, ocultando comandos
Rio 40 graus
Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”
Início dos anos 90. Estudava na PUC e o point daquela época era o Baixo Gávea, mais precisamente o bar Hipódromo. Quando comecei a frequentar era um pé sujo e ir fazer xixi era uma aventura. A porta não fechava direito e papel higiênico na bolsa era item indispensável. Ao entrar naquele horror, vc se sentia transportado para a Escócia. De repente Edimburgo. Naquele banheiro de Trainspotting. Depois teve a reforma, o bar ficou bacana, mas hoje ele só sobrevive na nossa memória, visto que fechou e seus 75 anos de existência foram reduzidos a um bar boutique, um pé limpo, ou seja lá o que isso quer dizer.
Sei que nesse dia que se perde no tempo eu precisava voltar logo pra casa, teria prova na manhã seguinte. Então alguém me levou até o ponto e peguei o 750, que dava uma puta volta no Itanhangá, passava pelo Rio das Pedras, mas me deixava perto de casa. Entrei, sentei. Ao meu lado no banco estava um senhor (que nem era tão velho assim, mas pra uma molecota de vinte anos qualquer um com mais de 30 é idoso), cara de trabalhador, cansado, provavelmente garçom de algum bar da Zona Sul, abraçado a bolsa, querendo tirar um cochilo. De repente o ônibus, ainda parado no ponto, foi invadido. Vários jovens com a camisa do Flamengo, vindos de um jogo, entraram pelas janelas, até que o motorista diante do caos liberou as portas para eles. Estavam indo para a Rocinha, o que significava alguns minutos de viagem. Era só atravessar o túnel Zuzu Angel, na época conhecido como Dois Irmãos e chegariam ao destino.
Pois bem, no ponto da favela eles foram descendo. Mas não o garoto que estava de pé ao nosso lado. Esse virou para o meu companheiro de viagem, que estava adormecido e gritou: “Passa o relógio, filho da puta!”. O cara ostentava um Orient, com fundo azul metálico, que para ele naqueles tempos deve ter custado muitas horas de trabalho. O homem não acreditou e olhou sem entender. Um soco foi o que ele levou, no meio da cara, com força e covardia. Entregue o relógio, aquele que parecia o líder do lado de fora, gritou: “O que está acontecendo aí, que demora é essa?” Um dos meninos que assistia tudo, respondeu de volta:” É o Caverna, tá ganhando o relógio do coroa”.Caverna já estava na porta para descer. E aí que digo, a autoridade do líder é inconfundível. Só ouvi: “Caverna, ta maluco porra, vai lá devolver o relógio do coroa e pede desculpa caralho!”. Então eu testemunhei umas das cenas de assalto mais nonsense da minha história. Caverna entrou no ônibus, mesmo sob coação, cabeça baixa, devolveu o relógio da vítima e sim, entre os dentes pediu desculpas pra o assaltado.
No dia seguinte, no café da manhã, contei para o meu pai o absurdo que vivenciara. Obti como resposta: “Não assaltam esse ônibus. A maioria dos passageiros mora no Rio das Pedras. Polícia Mineira minha filha, se Caverna não devolvesse, eles iam catá-lo no inferno”. Acostumada a uma cidade dominada pelo tráfico, fiquei boquiaberta.
Cabe aqui uma explicação para os não cariocas. Rio das Pedras é uma comunidade extensa da Zona Oeste, entre os bairros do Itanhangá, Jacarepaguá e Anil. Nascida na década de setenta, foi formada sobretudo por migrantes nordestinos. Hoje é a terceira maior favela do Brasil, com 54000 habitantes, perdendo apenas para a Rocinha e para a Favela Sol Nascente, no DF. Se você leu Cidade de Deus, o livro, de Paulo Lins, deve saber do enorme preconceito entre nordestinos migrantes e negros nas favelas do Rio de Janeiro. Não vou entrar nesse mérito, o que posso dizer é que lá atrás, os negros eram considerados os responsáveis pelo tráfico de drogas, que durante um tempo se limitava a maconha. Nessa comunidade, basicamente nordestina, formada principalmente por cearenses, havia um rígido código moral no qual as drogas não estavam incluídas.
Li o relato de um morador antigo da comunidade e o que ele narrou é que havia inicialmente o casal Otacílio e Dinda. A ideia era proteger a favela do tráfico de drogas e de tudo que advém daí. E sim, essa atitude era completamente aceita pelos moradores. Eles eram aquela força que substituía a polícia, mas dentro de suas próprias leis. Marido batia na mulher, era colocado pra fora. Moleque era pego roubando na área, era “desaparecido”. Otacílio morreu, Dinda iniciou o seu comando e foi desastroso. Começou a abusar do poder, tomar a casa de desafetos, mas não durou muito, logo foi assassinada. Começou aí uma briga interna, matança sem fim. E foi nesse vácuo que os agentes de estado acharam por bem tomar conta da parada. Tomar conta, entendam, no sentido de explorar comercialmente o que a favela tinha a oferecer. Pois é, eis a milícia no sentido que bem conhecemos. Esse é só um resumo, para aqueles que não conhecem o caos da cidade camuflada.
O que eu achava incrível é que a mídia e a classe média propagavam que aquilo era uma boa. Antes nas mãos dos policiais e ex-policiais, que não permitiam o tráfico, do que na mão dos psicopatas que transformavam menores em soldados, que matavam com requintes de perversidade, etc etc etc Ninguém porém perguntou a um morador quem ele preferia de algoz. A classe média sempre nos dando motivo de orgulho! A voz mais dissonante foi a do meu pai, o que provocou várias celeumas: ”Não vende drogas? Ainda. É questão de tempo”
O que me provocou a escrita dessa crônica foi na sexta-feira o julgamento, transmitido ao vivo, do caso Henry Borel, de 4 anos. No Brasil, morte violenta de criança não é nenhuma novidade. Segundo levantamento da Unicef em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2020, 1070 crianças de 0 a 9 anos foram assassinadas. A maior parte dentro de casa. A grande maioria negra. Casos, porém, como o do menino Henry, de Bernardo Boldrini e de Isabella Nardoni, nos atingem mais por dois motivos: O primeiro é por se tratar de crianças brancas, com pais supostamente esclarecidos, o que gera uma identificação na classe média. O segundo é que todos três foram mortos por aqueles que deviam estar cuidando deles, com tudo que a relação pai e mãe impõe. Bernardo foi morto pela madrasta, mas com conhecimento do pai, Isabella atirada pela janela pelo próprio pai depois de viver momentos de pânico, surra e terror com a participação da madrasta e Henry, por um sádico infanticida, entregue ao algoz pela própria mãe. Poucos dias depois da morte do garoto, testemunha disse que Monique e Jairinho falavam em ter um filho. Pois é. Filho pra essa gente é peça de reposição.
Não vou me ater ao julgamento, que apesar do circo armado pela defesa, parece que vai a júri popular. Mas, já que começamos falando da Polícia Mineira, quero focalizar um personagem que participa dessa triste história. Sobre o “Doutor” Jairinho já sabemos muita coisa. Não vou chamar de suposto assassino um homem com histórico de agressões e torturas em crianças (dos outros, não há registro que fizesse algo do gênero com os 3 filhos naturais), que sempre se envolvia com mulheres com filhos pequenos (ora, ora, por que será?) até finalmente dar a sorte de encontrar uma mãe omissa, mais preocupada com as vantagens financeiras que a união lhe trazia do que com a criança (isso está nos autos) visto que avisos sobre as agressões não faltaram .23 lesões encontradas no corpo de um bebê de 4 anos, como laceração do fígado, danos nos rins e hemorragia na cabeça, me impedem de chamar esse sujeito de suspeito.
Jairinho é acostumado com a impunidade. O que ocorreu foi uma morte que deixou rastros. Esse que foi o ponto fora da curva. E ele teve um ótimo professor. Jairão, seu pai, que deve estar agora com muita raiva. Não pelo ato abominável do filho, mas pelo desleixo que acabou incriminando-o. Vamos a esse senhor: Jairo Souza Santos, coronel aposentado da PM, tem três grandes paixões: Bangu, o bairro que nasceu e foi criado, futebol (foi presidente do time Ceres de Bangu, uma agremiação fundada em 1933 por marinheiros que residiam na rua Ceres, que deu nome ao time e cujo maior êxito foi em 1990, quando se sagrou campeão da Terceira Divisão. Adhemir da Guia jogou em suas bases, antes de ir para o Bangu, nem tudo é derrota) e escola de samba, quase se tornou presidente da Mocidade Independente de Padre Miguel, mas foi preso antes, pela Operação Furna da Onça, acusado de receber mesada para aprovar os projetos do então governador Sergio Cabral Filho. O Coronel Jairo foi um precursor da milícia que conhecemos hoje. O bairro de Bangu é seu. Está nas suas mãos. Aliás, ao lado de Rio das Pedras e Duque de Caxias, foi lá que teve origem os primeiros grupos milicianos com a configuração que possuem hoje. Pesquisas acadêmicas, relatório produzido pelo Laboratório e Análise da Violência da UERJ, além da CPI das Milícias conduzida por Marcelo Freixo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, citam o Coronel como fundador da Liga da Justiça, a maior liga paramilitar do estado do Rio de Janeiro.
Fundada em meados dos anos 90, o grupo iniciou-se com transporte público, ocupações de terra, cobrança de taxa de segurança, distribuição de gás, gatonet. A Liga da Justiça ao longo dos anos foi mudando de nome e expandindo suas atividades. Atualmente conhecida como Bonde do Ecko , domina mais de 60 por cento da cidade. Dois de seus líderes foram presos, muitos membros assassinados, mas Jairão e seu filho infanticida continuaram firmes. O que só revela uma grande capacidade de articulação e uma filha da putice sem limites.
O Coronel e seu filho foram envolvidos na tortura de jornalistas do Dia, amplamente divulgada. A milícia nada mais é que grupos armados criminosos tomando territórios e coagindo moradores. Execução sumária é brincadeira para essas pessoas. Eles só visam uma única coisa: DINHEIRO. De acordo com o sociólogo José Claudio Souza Alves (UFRRJ), a relação desses grupos com a política é onde assenta o seu funcionamento e é uma imensa evidência do porque as investigações com os envolvidos empacam no sistema Judiciário. Sim queridos, eles se elegem. E são bem votados. E ele diz mais:”A milícia é estruturada a partir da sólida base com a política institucional, é isso que a protege e faz com que ela se projete cada vez mais. Não vai haver atuação do Estado para investigar ou trazer algum dano a eles, pelo contrário, a estrutura do Estado em todas as suas dimensões, do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, vai ser movimentada para proteger, para impedir que sejam investigados, para fazer escapar da operação”.O coronel, com apoio do Flavio Bolsonaro, concorreu em 2018 mas não levou. Porém, devido ao remanejamento do deputado do qual era suplente, que foi trabalhar com o governador do Rio, ele cheio de pendenga na justiça, com habeas corpus que ainda não foi julgado, foi pegar o que é seu. Tá na ALERJ.
Jairão não é miliciano, é poeta. Palavras dele, chamada de uma matéria inclusive. Há dez anos atrás lançou o livro de poemas Pedaços da Vida, ou seja, comete versos. É bom desmistificar aquele papo de que todo homem deve ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Tivesse ele se limitado a plantar um pé de pitanga, o mundo estaria muito mais feliz. Tem onze stents no coração, mas vaso ruim não quebra. Seu grupo está completamente fechado com o Terceiro Comando, facção criminosa do Rio e claro, drogas rolam. Narcomilícia na veia. Como disse o meu pai, para idiotas que defendiam os milicianos por coibirem o tráfico: ”É só questão de tempo”.