O homem moderno perdeu o prazer do silêncio (Mário da Silva Brito, poeta)
Entrar numa banca de jornais nos anos 50 e 60 era uma festa. Além dos quadrinhos clássicos, criados por craques como Will Eisner, Hal Foster, Lee Falk, Al Capp, Alex Raymond, Jerry Siegel e Joe Shuster, havia a transcrição para gibis de personagens radiofônicos. Quem acompanhava as aventuras do Jerônimo, herói do sertão, pelo rádio (“quem passar pelo sertão, há de ouvir alguém falar, do herói dessa canção, que eu venho aqui cantar”), podia vê-lo desenhado nas páginas dos gibis. Ao lado da Aninha e do Moleque Saci (um jovem negro subalterno, espécie de Lothar sertanejo, que certamente seria vetado hoje em dia). O mesmo acontecia com o detetive Anjo, interpretado no rádio por Álvaro Aguiar. Auriverde homenagem ao Nick Holmes.
Tempos ingênuos. Como ingênuas eram as histórias de terror nacionais que se vendiam ao lado de Ferdinando, Príncipe Valente e Mandrake. Mortos-vivos se levantando das tumbas, mulheres em poses sensuais, roupas rasgadas em áreas estratégicas, assediadas por vampiros sedentos de sangue (ou seria de partes menos declaráveis para a moral da época?), frankensteins em múltiplas versões, mulas sem cabeça. Os desenhos podiam até ser pouco elaborados, mas eram suficientes para deixar o Menino sobressaltado, inseguro sobre mundos de além-túmulo.
Hoje, o terror ganhou capilaridade. Ultrapassou as fronteiras de cemitérios, cantos escuros, caninos afiados, morcegos, peles em decomposição. Tudo não passa de invenção amadorística perto do cortejo de sustos e arrepios que nos assalta a cada dia.
Estupro e morte de uma garota yanomami. Maldição das madrastas, que andam envenenando enteadas e jogando criança pela janela (será que aposentaram as sogras?). Milicos debochando de torturados pela ditadura. Projetos obscurantistas de expansão da homeschooling e cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Armamento amplo, geral e irrestrito. Invasão de terras indígenas pelo garimpo ilegal. Falanges histéricas antivacina e anticiência. “Eu não posso usar meu Viagra, pô?”. Massacres policiais no Rio, execução em câmara de gás improvisada por policiais em Sergipe. Insegurança alimentar dobrando no Brasil em sete anos e afetando mais as crianças. Entre os mais pobres, a fome tem nível de países africanos. Lembram do que o Animal Abjeto disse em 2019? “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Sabujismo explícito de autoridades a um bilionário norte-americano golpista, aliado de Donald Trump. Concentração obscena de riqueza: nos últimos dois anos, o mundo ganhou um novo bilionário a cada 30 horas; em 2022, nas mesmas trinta horas surgirão um milhão de novos pobres. “O nazismo era um movimento de esquerda”. Perto de tantas e tamanhas mediocridades e assaltos à razão, ao estômago e a um mínimo de decência, quem tem medo de Virgínia Woolf, digo, de Drácula?
Nessas horas, dada a dimensão dos estragos provocados no país por Sua Ignorância Repugnantíssima e as quadrilhas de seguidores fanatizados, certos problemas aparentemente menores parecem murchar. Quem dá bola, por exemplo, para o barulho descontrolado nos espaços comuns e áreas densamente habitadas em cidades grandes? No Rio, a tentativa de banir caixas de som das praias e reduzir a balbúrdia na praça São Salvador, em Laranjeiras, é criticada como “elitista” e inibidora de manifestações populares. A pessoa chega na praia, saca sua arma, digo, a potente caixa de som, atormenta até os pobres albatrozes, e acha que tem direito à “válvula de escape”. Na praça, rodeada por prédios habitados, o barulho que vai madrugada adentro produz, há anos, olheiras aterrorizantes em gente que não consegue dormir. Tristes tempos, em que o silêncio virou privilégio da “elite” e insidioso censor antipopular.
Na reconstrução nacional que, espero, não demora a começar, estará na pauta recuperar a noção de cidadania. Um conceito que envolve, obrigatoriamente, olhar em volta e perceber o alcance das ações individuais, em que medida um gesto pessoal afeta o ambiente em que ele se insere. Uma coisa é fazer uma roda de samba, um barulho amplificado ou uma batucada enlouquecida no deserto do Atacama, cercados por cobras, lagartos e a música do vento. Outra, muito diferente, é invadir sistematicamente com ruídos infernais residências de trabalhadores, massacrando o seu direito a um pouco de descanso e paz. Precisaremos educar os cidadãos a aceitar que espaço público não é área de vale-tudo, nem propriedade privada de desejos individuais.
Abraço. E coragem.