Ira furor brevis est (A cólera é uma loucura breve – Horácio, no livro de Epístolas)

Chegou a minha vez. Fui cancelado. Verdade que não foi aqueeele cancelamento, reação em cadeia de eliminação sumária nas redes sociais, mas a supressão do meu nome da lista de uma frequentadora do Facebook.

Como se deu o furdunço? A drag queen Rita von Hunty, pessoa muito politizada e com importante penetração em redes sociais, fez críticas ao Lula, com argumentos respeitosos. Sugeriu que os eleitores avaliassem um “voto radical” para presidente no primeiro turno, acompanhando as candidaturas lançadas pelo PCB e pela UP. Em nenhum momento subestimou o perigo do continuísmo bolsonarista, nem descartou a unidade antifascista para o segundo turno.

Houve reações furiosas, baseadas numa espécie de imperativo categórico: só o voto no Lula já no primeiro turno é correto, não existe legitimidade para quem pensa diferente. Incomodado com essa encarnação torta de infalibilidade papal, recheada de cólera e autoritarismo, resolvi dar um pitaco e escrevi pequena nota defendendo não apenas o direito de Rita emitir opinião, mas também concordando que, na hipótese de não se configurar vitória de ninguém no primeiro turno (como todas as pesquisas até agora indicam), é perfeitamente defensável um voto à esquerda do companheiro ex-metalúrgico. Claro que fundamentei meu raciocínio em premissas que julgo corretas.

A maioria das reações à minha nota foi educada, inclusive as de pessoas que discordam de mim. Todas elas foram muito bem-vindas. Ocorre que, em meio aos comentários, houve um bombardeio cruzado entre dois comentaristas, que terminaram por azedar o clima. A escalada terminou em ofensas e os estilhaços explodiram no meu colo. Impressionante a incapacidade de se conviver com o dissenso, na mesma linha das briguinhas infantis quando trocávamos de mal. Lembram? Cruzar os dedos mindinhos era sinal de racha…

Uma das comentaristas, indiferente ao fato de que a troca de ideias era sobre visões distintas de táticas eleitorais e não sobre a necessidade de derrotar o fascismo, resolveu não apenas sair da conversa, mas me cancelou. Ela, que sempre demonstrou interesse pelo que divulgo, me condenou no tribunal da linha justa, do dogma viscoso. Acho que por trás deste tipo de atitude está, além de um claro autoritarismo, a frustração de uma fantasia bem observada pela psicanalista Vera Iaconelli. Temos muita dificuldade de lidar com aquilo que sai do nosso controle, do que é por natureza incontrolável. Se minha opinião não pode ser controlada, como numa ordem unida, sou eliminado. Que democracia é essa?

Há um clima de muita intolerância no ar. As divergências resvalam para pugilatos verbais. Onde estará o tesão pelas batalhas de ideias, pelo prazer do argumento bem construído, pela possibilidade de aprender fora do quadrado defensivo? Lembro-me do jornalista John Reed descrevendo as vibrantes assembleias no período revolucionário bolchevique. Oradores se revezando, o clima fervendo, mas sempre na procura do melhor e sem desrespeitar ninguém. Agora, a disputa política se dá, não raro, no terreno da desqualificação, do ganhar no grito, passar o rodo. Como foi que chegamos a isso?

Não há dúvida de que os acontecimentos pós-2018 acentuaram o azedume. No entanto, quero olhar para o meu campo, o da esquerda. Não me refiro aos que, legitimamente, se satisfazem com reformas dentro do modo de produção capitalista. Penso nos que não renunciaram ao projeto de mudança radical na sociedade, transformando não apenas relações de produção, mas formas de relacionamento social e cultural. Creio que, nessa altura da História, já estamos convencidos de que não haverá mudança instantânea com a tomada do Palácio de Inverno. Não há, enfim, bala de prata. A revolução, o treino para ela, já começou. Precisamos, desde já, construir espaços libertários que desafiem o status quo que leva à desigualdade e à injustiça, à exploração e às guerras. Bloqueando o dissenso, como parecem fazer muitos companheiros, só estamos ajudando a perenizar a ordem que queremos desafiar. Onde está o bom e velho processo de convencimento tão caro aos que inspiram nossa sempre renovada utopia?

Nessas horas, gosto de lembrar o anarco-ipanemense Millôr Fernandes: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Oposição que, em sentidos variados, pode nos alertar: quem sabe vocês estão errados? Errado, eu? Não, o negócio é o seguinte… Mas pera lá, você deixou de perceber que assim e assado, na medida em que…

Abraço. E coragem.