O intervalo pro cafezinho era de lei na repartição. Sem pressa, aliviavam o peso das tediosas rotinas. Naquele dia, Carvalhinho estava todo pimpão. Fez um cafuné suspeito no Afrânio e tome gozação. Sete a zero, Afrânio! O Russinho estava impossível. Teu timinho não deu nem pra saída! Afrânio resmungou, que fazer? O Flamengo tomar de sete logo do Vasco era como beber, de um gole, o frasco inteiro de Emulsão Scott. O café descia azedo, com trilha sonora do cruzmaltino.
De mansinho chegou o Pacheco, alisando o bigode ralo. Falou de deslumbramento. Só assim para descrever a visita com a patroa, dona Etelvina, ao recém-inaugurado monumento do Cristo Redentor. Um portento, coisa do gênio pátrio, para marcar de vez aquele ano morno de 1931. Soprando o líquido fervente, segurando a asa da xícara de louça grossa entre o polegar e o indicador e ajeitando o suspensório, Pascoal entrou na roda. Cavalheiros, ouviram falar de um tipo chamado Bela Lugosi? Estivemos, eu e dona Lurdes, no cinema Odeon e assistimos uma fita estranhíssima. Já imaginaram alguém que prefere beber sangue ao invés de conhaque? O sujeito, um conde muito do chinfrim, era assim. Minha senhora não conseguia nem piscar quando o Drácula aparecia na tela. Ora, façam-me o favor! A gente tem por aqui sanguessugas muito mais assustadores. Hmmm, vampiro brasileiro… Alguém ainda vai aproveitar essa ideia. E com um único slurp esvaziava a xícara de café.
Antes de voltarem ao batente, debocharam do pedido feito por um tal de A.W. O Departamento Nacional de Indústria nunca tinha recebido nada igual. O cidadão, polonês, solicitava patente para produzir “uma forma de doces gelados e sorvetes”, denominada Peixe Gelado. Cáspite! De onde tinha tirado aquela doidice? Seria uma carpa salpicada com açúcar de beterraba? Com ou sem escamas? Por acaso era nostalgia de casa, terrinha gelada? Precursor involuntário do Eládio Sandoval, que, junto com o Contrarregra Maluco, criou, seis décadas depois, entidades como a Orelha Carnívora, o Tchaco de Pepino e … o Picolé de Peixe? Também estava na bruma futura o Cadillac Rabo de Peixe. Gargalhadas burocráticas. O pisciano A.W. ganhou cartão vermelho. Seu pedido foi indeferido.
Um ano depois, o persistente polonês gerenciava uma pequena sorveteria, a Casa Picolé. Nunca, porém, desistiu de criar seu próprio sorvete. A persistência não era nova. Vinha da vida limitada na Polônia profunda e passava pelos tempos difíceis em Buenos Aires, onde fez um pit stop prolongado antes de embarcar, casado e com uma filha a caminho, para o Rio de Janeiro, em 1930.
Em 1939, finalmente, ei-lo na Tijuca, fabricando o sorvete Sibéria. De alguma forma, tinha vencido os obstáculos burocráticos e colocado sua digital nas massas geladas. Consta que a loja também tinha prateleiras com pó para sorvete, sabores chocolate, damasco e abacaxi. Sem a Kibon nos calcanhares, deslizava tranquilo na cidade acostumada a calores saarianos.
Em algum momento, a produção artesanal entrou em crise. O emigrante, com filha pequena para criar e já mais familiarizado com usos e costumes do Rio, buscou outro ramo. Usou o talento com tecidos, linhas e agulhas e foi bater em portas na rua da Alfândega, um dos afluentes onde desaguava o rio judaico no centro da cidade. Lá, durante muitos anos, vestiu a gente remediada que circulava pelo comércio popular carioca. Quiçá o ambiente escuro e solitário, onde desenhava, cortava e costurava tecidos, tenha ajudado a transformá-lo numa pessoa quieta, de pouco sorriso, escorregadia.
Pena que os sorvetes tenham derretido tão cedo. Mais alguns anos e eu seria recebido com as honras de imperador da Abissínia naquela Sibéria tropical. Sim, porque, A.W. era Abraham Wittman. Meu avô materno.
Abraço. E coragem.