Faz dois anos e meio que convivemos com a narrativa desinformadora dos negacionistas da covid-19 e suas expressões, algumas das quais viraram chavões, que nos ferem os ouvidos: “versão oficial”, “ausência de contraditório”, “deriva autoritária”, « politicamente correto », “pensamento único”. Tudo é bom para desacreditar a ciência e abusar das fake news para atacar a democracia. O termo « pensamento único » virou até tese de doutorado, a partir do best-seller La Pensée unique, de 1995, do polêmico jornalista francês Jean-François Khan. Ocupa hoje o centro do pensamento populista de extrema-direita e também da esquerda stalinista. A expressão é considerada por Ignacio Ramonet, ex-diretor do Le Monde Diplomatique e ícone da esquerda latinoamericana, como uma « doutrina intimidatória controlada por uma polícia de opinião que asfixia qualquer reflexão livre ».
Estes termos traduzem a vitimização de quem se acha impedido de contestar o conhecimento científico das matérias relacionadas com a pandemia. São pessoas que se sentem ameaçadas pela perda de direitos, liberdades e garantias decorrentes das medidas sanitárias, que classificam de “ditadura sanitária”.
O mais surpreendente é que essas expressões foram transportadas para o linguajar militar, no contexto da invasão da Ucrânia. Enredados num emaranhado de análises geopolíticas de difícil compreensão, muitos se recusam a nomear o agressor e a manifestar solidariedade à vítima. Optaram por viver num mundo paralelo.
Muito se fala por exemplo, do papel da extrema-direita ucraniana no conflito, mas se omite toda referência às organizações congêneres russas.
A história da extrema-direita ucraniana remonta ao período stalinista e ao colaboracionismo com o invasor nazista. Com o colapso da URSS e a independência da Ucrânia, em 1991, estas organizações floresceram, mas nunca atingiram relevância eleitoral. O melhor resultado em eleições foi obtido pelo Svoboda (Partido de todos os Ucranianos), em 2012, com 10,44% de votos e conquista de 37 dos 450 assentos parlamentares. Nas últimas eleições, em 2019, o mesmo partido concorreu em coligação com outras forças de extrema-direita, tendo obtido 2,15% de votos e eleito um deputado.
Apesar da sua impotência eleitoral, o ativismo de algumas destas organizações reforçou-se nas ruas depois do processo do Euromaidan, com o beneplácito de instituições governamentais que permitiram a integração de grupos paramilitares em subunidades da Guarda Nacional. Foi o caso do batalhão Azov, do Corpo de Voluntários Ucranianos do Setor Direito, Kiev-2, e do batalhão OUN, entre outros. Estas organizações combateram nas províncias separatistas do Donetsk e Lugansk a partir de 2014, mas com a invasão da Ucrânia, em fevereiro deste ano, foi o Azov que assumiu o protagonismo na linha da frente, sobretudo em Mariupol, onde se tornou a tropa de elite.
Vejamos agora sob um outro ângulo. Na Federação Russa, o universo das organizações de extrema-direita e neonazistas é muito mais diversificado que na Ucrânia. A Unidade Nacional Russa (RNU), o Partido Nacional Bolchevique (NBP), a Sociedade Nacional Socialista (NSO), a União Eslava (SS), o Movimento contra a Imigração Ilegal (DPNI), o Obraz, o Conselho do Povo Russo (SRN), o grupo terrorista Organização Lutadora dos Russos Nacionalistas (BORN), envolvido em assassinatos de jornalistas, imigrantes e ativistas, são algumas das organizações que os russos veem desfilar a cada 4 de Novembro, desde que Putin substituiu as celebrações da Revolução de Outubro pela efeméride czarista do Dia de Unidade Nacional.
Dentre a extrema-direita leal ao Kremlin, conta-se o Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR), fundado em 1992 por Vladimir Zhirinovsky (1946-2022), representado na Duma por 21 deputados. O ex-vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin esteve muitos anos associado ao partido nacionalista Rodina e foi fundador, em 2007, do partido Grande Rússia, que integrou o xenófobo DPNI.
No quadro do conflito nas províncias do Donetsk e Lugansk o envolvimento político e militar da extrema-direita russa pró-separatista, casos da União da Juventude Eurasiana (EYU), NBP, União Nacional Russa (RNU), o batalhão Svarozhici e a brigada Oplot, sempre foi superior ao dos grupos ucranianos. Disso porém pouco se fala, muito se esconde.
As ligações do Kremlin com líderes e ativistas da extrema-direita europeia também são bem conhecidas e estão descritas no livro Russia and the Western Far Right: Tango Noir (2017), de Anton Shekhovtsov.
Numa vista d’olhos pelas redes sociais e artigos de opinião dos russófilos convictos ou envergonhados, constata-se que qualquer menção à extrema-direita russa é omitida, ou substituída por palavras de desprezo ao encontro do “presidente-comediante” Zelenski e ao seu Governo de “fascistas e nazistas”. Isso demonstra, para além da desonestidade intelectual e da desinformação propagandística, a desorientação daqueles que vivem num limbo ideológico desde a queda do Muro.
Contra os fatos descritos, faltam argumentos até para o eterno chanceler Sergei Lavrov, que ao tentar explicar a inexplicável “desnazificação” da Ucrânia, não teve outra saída senão apelar para o antissemitismo mais abjecto. Em entrevista ao canal italiano de notícias Zona Bianca, Lavrov menosprezou o fato de Zelensky ser judeu e, portanto, antinazista, ao lembrar que Hitler também tinha origens judaicas. Isso não quer dizer nada; disse, acrescentando: “O sábio povo judeu diz que os maiores antissemitas são os próprios judeus.”
Na falta de ter o que falar, podia ao menos ter ficado calado. Mas não, preferiu invocar “o nível mais baixo de racismo contra os judeus, que é acusar os próprios judeus de antissemitismo”; como replicou Yair Lapid, ministro das relações exteriores de Israel.
As críticas jamais se referem ao regime russo, que proibiu o uso da palavra guerra, restringiu a liberdade de expressão e o direito de manifestação, condenando a 15 anos de prisão todos os que se opuserem à verdade oficial. Negam-se a condenar Moscou, seja porque Putin é o grande apoiador dos partidos de extrema-direita no mundo, seja em nome do anti-imperialismo americano. Vindos da esquerda stalinista como da direita extrema, se insurgem contra o que consideram ser uma “deriva autoritária” e a imposição do “pensamento único” na abordagem da guerra na Ucrânia. Vão ainda mais longe na sua ânsia negacionista, usam e abusam das mensagens desinformadoras sobre a invasão, por exemplo ao levantar dúvidas sobre os autores do massacre de Bucha, o que os coloca num plano próximo da infâmia. Espalham fake news, sendo que alguns pseudojornalistas convertidos em pseudo-experts em relações internacionais, não se envergonham em receber ordens diretamente do Kremlin ou do « ideólogo » do regime, Aleksander Dugin, muito próximo do « filósofo » Olavo de Carvalho.
Para estes, stalinistas e ultradireitistas, o regime russo é uma democracia “relativa”, expressão criada, vale a pena lembrar, pelo ditador Ernesto Geisel para explicar que o Brasil sob o jugo militar não era um regime autocrático.
Aqueles que recusam uma palavra de solidariedade para com a luta do povo ucraniano contra o invasor, pelo fato de existirem organizações “fascistas e neonazistas”, ainda não perceberam (porque se negam a fazê-lo) que a agressão russa, ao invés de “desnazificar” a Ucrânia, contribui para o reforço da extrema-direita. E não apenas dentro do território ucraniano. No entanto, dizem-se humanistas.
É hora de dar nome aos bois. O invasor é quem invade, a vítima é o invadido. Simples assim. Quem nega a verdade quer reescrever a história, e quem o faz é revisionista.
O risco de aceitarmos o revisionismo é que fechemos os olhos para os fatos e achemos natural a ameaça de uma guerra nuclear, saída da boca de Sergei Lavrov, o homem que teve a impudência de pedir que a comunidade internacional pare de livrar armas à Ucrânia. O perigo de baixarmos a guarda é que não nos rebelemos quando mísseis são atirados contra alvos residenciais em Kiev, a poucos metros do secretário-geral da ONU, que representa, queiramos ou não, os 8 bilhões de habitantes da nossa casa comum.
Os mísseis russos disparados da Crimeia contra Kiev quando Antonio Guterres se reunia com Volodymyr Zelensky e que mataram a jornalista ucraniana Vira Hyrych, da Rádio Liberdade, foram a prova definitiva de que Putin não negociará, a não ser para evitar uma derrota demasiado humilhante.
Hoje, no momento em que a guerra muda de natureza, ainda há quem minimize a invasão da Ucrânia, da mesma forma que se negou a pandemia, uma “simples gripezinha”. Lembram?
Amanhã, quem sabe, fecharemos os olhos para aqueles que reescrevem a história para negar o holocausto, o genocídio armênio, o ruandês, a apartheid, os territórios ocupados por Israel e, por que não, a ditadura civil-militar brasileira e o nazifascismo bolsonarista.
Delírio? Não, certamente não, pois já estamos a caminho da barbárie, e como diz o ditado gaulês “Impossible n’est pas français!”, impossível não é francês, nem tampouco português.