O Datafolha informa: cerca de 60% dos cariocas sairiam do Rio se pudessem. A maioria deles alega ter medo constante de crimes contra a vida e o patrimônio. Traduzindo: sentem-se ameaçados por sequestros, assaltos em casa e nas ruas, balas perdidas, assassinato. Já que estamos no período do Pessah judaico, em que se lembra o êxodo dos escravos hebreus do Egito, imagino o que seria uma revoada semelhante na população carioca. Um bloco de 4 milhões de pessoas, organizadas em alas compactas e conduzidas pela bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel, os espectros de Clovis Bornay e Wilza Carla como mestre-sala e porta-bandeira, animadas por estandartes mostrando Anitta nos decúbitos ventrais de praxe e as celulites poliglotas, todas procurando a porta de saída. Gente da Pavuna, Barra, Catumbi, Olaria, Tijuca, se cuidando para não tropeçar nos pedintes e moradores de rua, cair nos buracos espalhados por todo canto, ser atropelada por motoristas alucinados que ignoram sinais de trânsito, se assustar com sonhos de melhoria frustrados. Multidão digna de filme do Cecil B. de Mille. Ou do impagável Cecílio B. de Milho, criado pelo Oscarito no “Carnaval da Atlântida”.

Não faz muito, eu estava fora dessa estatística. Não havia hipótese de pensar em sair do Rio. Todas as minhas referências, geográficas, oníricas, visuais, sonoras e afetivas, estavam aqui. Eu precisava vê-las ou, pelo menos, senti-las próximas. Reconstruir laços fora do lugar onde nasci não me interessava. Com a persistente desfiguração da cidade, traduzida em formas diferentes de violência, espicho um olho curioso para fora das fronteiras cariocas. Haverá alhures onde eu possa encontrar paz de espírito, presente que, de gozação, sempre peço aos que me perguntam o que gostaria de ganhar no aniversário?

Pensando bem, sempre fui um turista na minha cidade. Conheço, mal e mal, franjas das zonas sul e norte. Antes da pandemia, planejava andar por subúrbios sobre os quais tomo conhecimento apenas pelas páginas policiais. Nada sei sobre Madureira, Osvaldo Cruz, Magalhães Bastos, Marechal Hermes, Bonsucesso, São Cristovão, e por aí vai. A alma carioca, se é que existe, também habita essas áreas. Suponho, idealizo?, que rodas de choro e samba, quintais antigos, vilas de casas, botecos não gourmetizados, lá estão, em reverência a um Rio que ainda não derrapou na modernidade gentrificada.

Dia desses, estive no Leblon. Para quem não mora aqui, esclareço. É o metro quadrado mais caro da cidade, quiçá da galáxia. Experiência perturbadora. Os tipos físicos que lá gorjeiam não têm equivalência fora daquele perímetro estreito. São a aristocracia, os do andar de cima, cereja do PIB. Ali convivem extremos. No lado de fora de uma sorveteria chique, crianças de olhos tristes, que jamais tomarão os cremes gelados, tentam arrumar um trocado. Músicos andrajosos pedem esmolas. Que raio de sociedade considera isso natural?

Estaremos nos transformando numa espécie de buraco negro, que engole livrarias e comércios tradicionais e regurgita drogarias, bares com sonoridades assassinas e agências bancárias? Em Copacabana, acaba de ser inaugurada a 122ª farmácia. Livrarias? Apenas uma, heroico e acanhado sebo no chamado Shopping dos Antiquários. Aqui, na zona sul, nasceu a Bossa Nova. Os dois últimos redutos dela, as lojas Bossa Nova & Cia. e a Toca do Vinícius, fecharam durante a pandemia. Quem quiser ouvir Carlinhos Lyra, Nara Leão, João Gilberto, Zimbo Trio, Alaíde Costa, vai ter que apelar para velhas coleções de vinis e CDs. Nos rádios, com raras exceções, só dá para ouvir lixo comercial.

Continuo querendo morar aqui. Gente querida coloca chumbo em minhas asas fugitivas. Tá difícil e me atormento com sentimentos contraditórios. Às vezes acho que toda a população carioca foi abduzida e substituída por descendentes de burgúndios e frisões. Sobrou um tantinho da paixão antiga, suficiente para concordar com Millôr Fernandes, que, numa crônica de 17 de dezembro de 1980, disse o seguinte: “Meu céu existe, embora esteja mais perto que o de Sua Santidade. É esse aí, privilegiado, do Brasil – mais comumente o de Ipanema. Azul-lavado hoje, quando escrevo, neste verão maravilhoso do Rio, o que, imundícies à parte, péssima administração à parte, violência à parte, me faz continuar amando minha cidade e, por extensão, seus habitantes”.

Abraço. E coragem.