As semanas passavam, os meses passavam, e era sempre tudo igual: o paciente quase não falava, dava para contar suas palavras nas mãos, e quando eu fazia perguntas ele respondia sempre: “Mais ou menos”. Depois de muitos “mais ou menos”, sem saber o que dizer ou fazer, me ocorreu perguntar-lhe o que fazia quando criança, do que mais gostava de brincar. Contou sobre um autinho que manejava no hall do edifício onde morava e desviava das colunas e adorava essa brincadeira diária. Fiquei contente, e ele disse como na infância sabia brincar tão bem e agora como adulto era tudo mais ou menos, mais menos que mais. Não sei se foi isso que disse ou só a recordação do passado, mas após pouco tempo veio com uma novidade: comprara a melhor caixa à venda na cidade, pois era baterista além de ser funcionário federal. Quando contou a novidade, eu disse: “Enfim fizeste algo excelente e não mais ou menos”. Uma importante mudança começava a ocorrer nele e na nossa relação.
Mudar de casa, mudar de cidade, são vontades possíveis. Diferente e mais difícil é mudar a si mesmo, pois o que é possível ou não mudar não se sabe ao certo. Mudança é um movimento, uma metamorfose, como o poema de Mario Quintana sobre o amor intitulado “Carreto”: “Amar é mudar a alma de casa”. A mudança é uma dança de amor, em que é preciso alterar o ponto de observação, ver a vida sob outra ótica, outra lógica. A dança da mudança é rever o passado através de novas histórias que diminuam as dores das identificações. Enfim, mudar é diminuir a condenação ao peso e aumentar a leveza de viver.
Quem busca um tratamento, uma análise, está desejando melhorar. As questões mais frequentes são como viver melhor, entender-se, superar seu tédio, conquistar um entusiasmo de viver. Construir curativos dos vazios que liberam energias libidinais para novos laços amorosos. Rever o passado, entender seus pais, irmãos, desprender-se dos apertados laços familiares. Recuperar, aos poucos, a capacidade de jogar, brincar, que se tinha quando criança. Aliás, foi o que ocorreu com o jovem baterista de “rock”, pois ao lembrar a sua brincadeira trouxe o passado para o presente e ajudou a despertá-lo da letargia. Um aprendizado essencial na vida adulta é o quanto cada pessoa aprende a se fazer cargo de si, aprendendo a ser sua própria mãe e o seu próprio pai, a tomar conta de si mesmo.
É um alívio encontrar certa leveza de viver ao recuperar o poema interrompido, como ocorreu com o baterista. Os desafios da mudança se enfrentam com as tendências de conservar o conhecido, o poderoso masoquismo moral. Quando o analisando consegue despertar sua curiosidade sobre como foi aprendendo a ser o que é, a partir das identificações pode ir se abrindo, na transferência, às novas janelas que permitem viver desde novas perspectivas. Os desafios de mudança em psicanálise são tanto para o analisando como para o analista, uma abertura às metamorfoses é o viés poético de existir. Talvez esteja escrevendo sobre mudanças como um desejo de abraços com música na pós-pandemia, na pós-devastação do país, e da Ucrânia. Desafios de mudanças.
P.S.: Escrevendo sobre mudanças, desejo indicar um livro diferente, repleto de fotos e alguns textos saborosos, como “As curvas da Protásio Alves”. São registros de desenhos, grafites nas paredes e nos muros de Porto Alegre. “poalaroides urbanas” é uma obra revolucionária do escritor Breno Serafini, que passou dez anos fotografando como a periferia é criativa ao embelezar a cidade. A obra está à venda na Livraria Bamboletras e com o autor: breno@brenoserafini.com.br, WhatsApp 51 98579.0179 (Breno ficará feliz se vocês escreverem a ele e comprarem o livro).