Procurador-geral do TPI vai investigar crimes de guerra russos na Ucrânia, mas não será fácil levar Putin ao Tribunal de Haia
Embora reconheça que não será fácil levar Vladimir Putin ao banco dos réus do TPI, o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, prometeu abrir investigações “independentes e objetivas” tão rapidamente quanto possível. “Existe uma base sólida” para se acreditar que houve “crimes de guerra e crimes contra a humanidade” na Ucrânia por parte da Rússia.
O ditador russo poderá, ou melhor, deverá ser acusado pelo Tribunal de Haia por fomentar crimes de guerra e contra a humanidade na Ucrânia e não apenas pelas atrocidades cometidas desde o último 24 de fevereiro.
O TPI já havia promovido uma investigação preliminar, com base em alegações de que teriam sido cometidos esses crimes no conflito armado que, desde 2014, opõe o governo ucraniano às forças separatistas apoiadas pela Rússia na região do Donbass, no leste do país. Neste mesmo ano, as tropas moscovitas invadiram e anexaram a Crimeia. Agora, “perante a expansão do conflito no último mês”, Karim Khan quer investigar novos relatos de crimes que entrem na alçada do TPI.
39 países, incluindo a União Europeia e a União Africana, já pediram oficialmente a abertura das investigações sobre a invasão russa.
Embora nem a Rússia nem a Ucrânia tenham ratificado o Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional em 1998 (o que em princípio colocaria os dois países fora da sua alçada), o tratado prevê que o TPI terá jurisdição caso um país que não o integre aceite a autoridade do Tribunal, apresentando uma declaração formal nesse sentido. E foi justamente isso que a Ucrânia fez em dois momentos: primeiro através de uma declaração em que aceitava a jurisdição do TPI para investigar e julgar crimes cometidos no seu território no início do conflito com as forças separatistas russas, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014; depois através de uma segunda declaração enviada em setembro de 2015, de “duração indefinida”, que autoriza o Tribunal de Haia a “identificar, processar e julgar os perpetradores e cúmplices de atos criminosos cometidos em território ucraniano a partir de 20 de fevereiro de 2014”.
Em 2020, a então promotora do Tribunal, Fatou Bensouda, concluiu que havia uma base procedente para acreditar que três tipos de crimes foram cometidos: no contexto da condução das hostilidades, durante as detenções e aqueles cometidos na Crimeia pós-invasão. Agora, o atual promotor do TPI, Karim Khan, está abrindo oficialmente a investigação proposta por sua antecessora e ampliando-a para incluir a recente invasão da Ucrânia.
Khan diz ter pedido à sua equipe que aproveite todas as oportunidades para obter e preservar provas e explicou que a abertura do processo poderia ser agilizada se um país membro do TPI pedisse ao seu gabinete que averigue a situação na Ucrânia, o que a Lituânia anunciou já ter feito. A ministra lituana da Justiça, Evelina Dobrovolska, falou por telefone com o seu homólogo ucraniano, Denys Maliuska, informando-o que o seu governo estava “apelando ao procurador do Tribunal de Haia”, de acordo com o Estatuto de Roma. O que foi confirmado pela primeira-ministra lituana, Ingrida Simonyte, ao jornal norte-americano Washington Post.
A Lituânia é um país báltico, portanto vizinho da Rússia, extremamente preocupado com o risco de que Putin avance para além das fronteiras da Ucrânia.
A decisão anunciada pelo TPI é consequência de inúmeras denúncias de crimes de guerra que estariam sendo cometidos pelas forças russas nesta invasão. O embaixador ucraniano na ONU lembrou, dias atrás, que as tropas de Putin atacaram civis e que entre os seus alvos contam hospitais, ambulâncias, escolas, teatros, orfanatos e outros alvos não militares. O embaixador apelou também à punição do líder bielorrusso Alexander Lukashenko, acusando-o de ataques à Ucrânia e de ter oferecido o seu território como base para a invasão russa.
Em Bucha, nesta segunda-feira (4), o mundo viu estupefato as imagens de centenas de cadáveres nas ruas próximas de Kiev, numa região retomada pelas forças ucranianas. De acordo com as autoridades da Ucrânia, mais de 300 corpos foram enterrados em valas comuns. A Rússia contesta a autoria do massacre.
Há de se falar também dos refugiados e deslocados internos, que já somam 10 milhões (o maior número desde a Segunda Guerra), dentre os quais mais de 4 milhões de crianças, ou seja, a metade da população infantil da Ucrânia, segundo a UNICEF.
E isso sem dizer que não houve, por parte da Rússia, nem sequer uma declaração formal de guerra, nem é claro um pedido de autorização para o uso da força à ONU, como exige o Direito Internacional.
O promotor do TPI deve provar que os supostos crimes são crimes de atrocidade: genocídio, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra. Mesmo que seja extremamente difícil provar a intenção de cometer tais crimes e designar com certeza absoluta seus autores. Tão difícil que apenas seis pessoas foram condenadas pelo TPI e cumpriram pena.
O Direito Internacional Humanitário é baseado nos princípios de humanidade, necessidade, distinção e proporcionalidade. Um crime de guerra ocorre quando os civis não são diferenciados das tropas militares, quando os danos aos civis não são minimizados e quando há destruição, sofrimento e baixas desnecessárias.
Se um dia o TPI emitir um mandado de prisão contra Putin, ele não poderá viajar para os 123 estados que fazem parte do Tribunal, pois outros Estados podem decidir entregá-lo à Justiça. Mas um mandado de prisão não é uma garantia de condenação. E é difícil, senão praticamente impossível, vincular um chefe de Estado em exercício a crimes cometidos pelas forças armadas no terreno.
Por isso, é quase certo portanto, que não veremos Putin em Haia. Muito embora o candidato a czar venha sendo acusado de violações dos direitos humanos praticamente desde que chegou ao poder, em 1999. Ainda como primeiro-ministro, liderou a repressão do separatismo checheno. Depois, em 2008, no conflito com a Geórgia em torno das províncias da Ossétia do Sul e da Abkházia, as tropas russas foram acusadas de atacar alvos civis. Em 2016, o TPI abriu uma investigação de eventuais crimes de guerra cometidos na Geórgia em 2008. E em 2020, como já dissemos, a promotora do TPI acusou Putin de três crimes cometidos na Crimeia.
De qualquer maneira, independentemente das provas de crimes que o TPI recolha no contexto desta nova invasão da Ucrânia, a possibilidade de Putin vir a sentar-se no banco dos réus em Haia é remotíssima. Primeiro porque a jurisdição do TPI só abrange crimes ocorridos no território de um país-membro ou que tenham sido cometidos por um cidadão de um desses países. Rússia e Ucrânia assinaram o tratado, mas os seus parlamentos não o ratificaram. Há duas exceções: a primeira, como falamos, se refere à possibilidade de um país que não é parte do TPI aceitar expressamente a sua autoridade (o que a Ucrânia já fez), a outra implicaria que a própria ONU levasse a questão ao Tribunal de Haia; um cenário impossível na medida em que a Rússia, juntamente com Estados Unidos, China, França e Reino Unido, é um dos cinco países membros permanentes do Conselho da Segurança com poder de veto.
No entanto, teoricamente não é impossível que Putin possa vir a ser detido e posteriormente julgado em Haia, após ter deixado o poder (se reeleito, poderá ser presidente até 2036). A procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, mostra-se confiante de que esse será o seu destino: “Cidadão Putin, habitualmente respeito a presunção de inocência, mas não no seu caso. Provaremos num julgamento justo que você é um assassino e o principal criminoso de guerra do século XXI. Eu, como procuradora-geral do Estado soberano da Ucrânia, e no interior das suas fronteiras, que não são suas, declaro-lhe isto oficialmente: virá o tempo em que lhe direi em Haia, cara a cara.”
Como quase impossível não significa impossível, podemos sonhar com Putin e Bolsonaro vestidos com roupas listradas, sentados lado a lado no banco dos réus do TPI, ouvindo a sentença de condenação à perpetuidade pelos crimes cometidos. Bolsonaro terá então todo o tempo livre para negociar a compra de fertilizantes enquanto Putin ensina xadrez ao “ilustre” colega.