Ao José Sambursky, suave habitante das minhas origens.
Não tinha muitas expectativas. Os últimos filmes do Woody Allen andaram bem abaixo de suas obras-primas (Crimes e pecados, Hannah e suas irmãs, A era do rádio, meus prediletos), todas com fortes referências autobiográficas e o indisfarçável – e ácido – humor judaico. De qualquer modo, grife é grife. Submetido a um boicote tão impiedoso quanto histérico e injustificável, Woody superou minhas expectativas e fez lembrar seus momentos mais criativos em “O festival do amor” (tradução horrorosa para “Rifkin’s festival”), produção de 2020.
A relação conflituosa de Woody, e certamente de meio mundo, com a Morte, é carimbo na testa do cineasta. Ele usa o humor para acalmar a aflição por saber, como todos nós, o fim inegociável. É uma de suas obsessões recorrentes, que deriva para a folclórica hipocondria. Certa vez, disse: “Não tenho medo de morrer. Só não quero estar lá quando isso acontecer”. Em “Rifkin’s festival”, Woody homenageia seus ídolos cinematográficos, em especial Ingmar Bergman. Lá está, satirizada, a famosa cena do jogo de xadrez da Morte com Antonius Block, cavaleiro medieval recém-chegado de uma Cruzada. Costuma ser a primeira lembrança de quem assistiu “O sétimo selo”, de 1956.
No filme de Bergman, Block é atormentado por uma crise de fé. Que deus seria aquele, mudo, invisível, indiferente ao sofrimento que devastava a Europa com a Peste Negra? Divindade insensível à tão humana busca por um objetivo para viver! Dialoga com a Morte, que não teme (“meu corpo está preparado, minha cabeça não”), e através dela tenta descobrir se há algo “depois”. O jogo de xadrez é oportunidade para a Morte (excepcional interpretação de Bengt Ekerot) mostrar paciência e total independência de padrões morais e crenças religiosas. Ela dá razão, concluo, ao que disse, no século XVII, Cyrano de Bergerac: “E depois, morrer não é nada, é terminar de nascer!”.
Antes de voltar ao Woody, breve parênteses. Em entrevista sobre seu filme, ele critica a infantilização da atual indústria cinematográfica, com seus blockbusters de histórias em quadrinhos. “Se eu tivesse onze anos, adoraria. Acontece que já sou adulto, gosto de personagens mais complexos”.
Adiante. Mort Rifkin, intelectual e alter ego do Woody, está insatisfeito com os rumos de sua vida. Não consegue escrever um livro, “tem que ser uma obra-prima”, não faz por menos, sua esposa o trai, e ele se frustra quando tenta flertar com uma mulher bem mais jovem. É nessa hora atormentada que surge a Morte (Christoph Waltz, excelente) e propõe um jogo de xadrez.
Os diálogos na frente do tabuleiro são geniais. A Morte, condescendente, didática e algo entediada, mostra ao melancólico Rifkin que deve aceitá-la ou será condenado a morrer muitas vezes. “Não aguento ver um pobre coitado estragar a vida porque não reconhece o inevitável”, comenta, num pedaço que remete a outros fragmentos obsessivos de filmes do Woody. Respondendo à reclamação de Rifkin de que sua vida era vazia, a Morte sentencia: “A vida não tem sentido para ninguém, mas não significa que tenha que ser vazia”. Batata. Buscar sentidos para a vida, trabalho que se renova diariamente, é a única forma de ofuscar, temporariamente, a sombra insistente do grande Buraco Negro. Estar envolvido em trabalhos prazerosos, em relações pessoais interessantes, em leituras estimulantes, em planos que geram filhotes, combate uma espécie de maldição exposta por Louis-Ferdinand Céline: “A maior parte das pessoas morre apenas no último momento, outras começam a morrer e a se ocupar com a morte vinte anos antes, e às vezes até mais. São os infelizes da terra”.
A Morte se despede de Rifkin (“sua hora ainda não chegou”) recomendando-lhe que comesse muitos vegetais e frutas, fizesse exercícios leves, mas regulares, não fumasse. Ah, e que não esquecesse da colonoscopia! Woody Allen em grande forma. Se fechar os olhos, sou capaz de ouvir estas recomendações na voz de um ancestral, ditas em ídish e com gestos típicos. Oi vei!
No final de “O sétimo selo”, o casal de artistas itinerantes e seu pequeno filho são os únicos que sobrevivem à blitzkrieg da Morte. Um recado de Bergman sobre a Arte? Possivelmente sim. Chama a atenção o contraste entre a desorientação melancólica do cavaleiro medieval, com suas dúvidas insolúveis, e a leveza, o dom do improviso, a esperança sorridente, a alegria de criar, dos artistas. Fez-me lembrar de Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”. Bergman, Allen, grandes artistas. Diretores de estradas que fazem a vida permanecer.
Perguntado sobre a passagem do tempo, Mário Lago, que fez de um tudo na vida, de oficial nazista na novela Sheik de Agadir (com o inesquecível tapa-olho!) a compositor de Aurora e Saudades da Amélia, tinha sua fórmula para seguir vivendo: “Eu fiz um acordo com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Qualquer dia, a gente se encontra e, dessa forma, vou vivendo intensamente cada momento”.
Abraço. E coragem.