Primeiro a peça foi só “EU”, mas com o tempo ela mudou para “Eu é Nós” e aí seguiu a frase poética: “Eu é outro”, do poeta Rimbaud. Tanto essa frase como o novo título da peça revelam o quanto em cada um há outro, há outros, há uma pluralidade de pessoas psíquicas em cada pessoa. É como Fernando Pessoa escreveu: “Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho.” Essas diferentes almas, os outros, constituem cada um, são as identificações, essa pluralidade de pessoas psíquicas que convivem em conflito na vida da gente. Essa pluralidade é conhecida como as identificações que começam cedo num bebe e são essenciais, pois cada pessoa se constitui a partir da assimilação de aspectos, atributos dos outros. São incorporações que vão ocorrendo através da via oral em especial e, aos poucos, vão se formando as características de cada um, até seu ideal de eu, o super eu. As identificações também são exigências conflituais, não são harmônicas, entende-las leva mais que uma vida. As artes, os artistas, ajudam a viver, bem como o humor e a capacidade de brincar.
Uma de nossas artistas é Suzana Saldanha que já era uma conhecida atriz em Porto Alegre quando decidiu ir viver no Rio de Janeiro para novos desafios. Agora lança o livro “Nunca pensei em ser atriz” da Suzana Saldanha, onde escreve suas aventuras como atriz, diretora, professora de teatro. Incluiu no livro uma carta que escrevi a ela quando o espetáculo “Eu é Nós”, já estava por estrear:
“Porto Alegre, oito de dezembro de 2010”.
Suzana
Apesar da velocidade do e-mail, prefiro o calor de uma carta. Se eu tivesse que escolher uma só palavra para definir o século que começa, poderia ser desamparo. Hoje todos nós precisamos nos confrontar com o desamparo num mundo sem norte, onde muitos se perguntam para onde ir. Felizmente temos a arte, que resiste e insiste em não sucumbir. Por isso artistas desenham, fotografam, escrevem, cantam, atuam, dançam. A arte nos ampara e é sempre bom estar perto dos artistas e dos nossos essenciais amigos. O amigo é um espelho extrafamiliar que dá sustentação a quem a gente é. E manter um velho amigo aumenta a felicidade pelas graças e desgraças vividas em comum. Cuidemos de nossos amigos que nos cuidam, porque o encanto de viver depende das parcerias que aumentam o prazer de viver.
E, por fim, segue firme a âncora que procuramos nos momentos de grandes desamparos- que é o amor. Mas também o amor, como tudo, um dia pode terminar, desiludir, gerando um terrível desamparo, ou seja, nada nunca é seguro. Já que vivemos em tempos de insegurança pública e privada, saibamos ver os obstáculos como desafios para reinventar a vida a cada dia. Se não, crescem os adictos de remédios, de comidas, drogas, igrejas, seitas salvadoras, plásticas. Tudo para preencher seus vazios. Enfrentar o desamparo é fundamental, pois é nesse enfrentamento que se joga o destino de cada um.
Tu, Suzana, tens mesmo que fazer uma peça com esse tema, desamparo, onde estejas só no palco, só tu e toda tua tribo te apoiando. Estás pronta de verdade. Boa noite. Um beijo, Abrão.
P.S. Amiga, talvez eu nunca tenha dito isso: quando o Eu é Nós, ocorre uma metamorfose, uma mudança, porque o sofrimento só pode ser aliviado quando nós sentimos que temos irmãos da vida.
“Eu é Nós” será apresentada no Teatro São Pedro na quarta feira dia seis de abril de 2022, começando às 19 horas, logo cheguem antes. Sonho que vocês possam ir nesse dia do espetáculo e do lançamento do livro “Nunca pensei em ser atriz” da Suzana Saldanha. Há depoimentos no livro entre os quais lembro uma carta de Caio Fernando de Abreu, mensagens de diretores de teatro como Aderbal Freire Filho, Maria Helena Lopes, Luís Artur Nunes. Trabalhou no cinema com Domingos de Oliveira e foi premiada com kikito em 2002. Tanto o livro como o espetáculo revelam a vida empolgada da Suzana.