A cena seria apoteótica. Tambores rufando, equipes de fotógrafos por toda parte, correspondentes internacionais zapeando sem parar. Chegara, enfim, o grande momento. Os tambores param, a expectativa da grande massa cresce, é quase palpável. E então … caem as máscaras! Urros, desmaios, corre-corre, fogos ao léu, lágrimas e soluços. Depois de dois anos de isolamento forçado, minha neta veio dormir aqui em casa e, pela primeira vez, ficamos sem máscaras. Curiosos, olhamos a pele dos rostos com uma cor esquisitona, os narizes que jaziam adormecidos na memória, o sorriso que tanto merecíamos. Imaginei a tal cerimônia apoteótica, solene, seguida de festa popular, palmas na vizinhança. Que nada. A queda da Bastilha, digo, da necessária proteção facial, deu-se com sobriedade, passou quase despercebida, como se todas as restrições tivessem durado apenas uma noite mal dormida. E fomos à vida.
A neta não dorme sem ler alguma coisa. Me pediu uma sugestão. Consultamos juntos as lombadas da pequena biblioteca infantil e tiramos um livro que ela não conhecia. Tratava-se de uma troca de correspondências fictícias, primorosamente impressas. Desses livros em que a experiência da leitura se combina com a vontade de tocar e cheirar. Em algumas páginas, havia envelopes com os textos das cartas, tornando-nos voyeurs das intimidades dos personagens. Uma delas estava datilografada, estilo que a neta desconhecia. Como é que se imprimiam aqueles caracteres? Pergunta natural para alguém da geração dela, que já nasceu durante o reinado de laptops e adjacências. Disse-lhe que tinha uma máquina de escrever, testemunha silenciosa de muitos trabalhos. Prometi desarquivá-la no dia seguinte.
Café da manhã tomado, subi numa escada e perturbei o sono já antigo da heroica Hermes Baby. Modelo que guarda certo parentesco com a “intimorata Remington” do Stanislaw Ponte Preta. Coloquei-a na frente da minha pequena querida. Olhou para as teclas, o cilindro preto, a fita rubro-negra, as engrenagens misteriosas. Mostrei-lhe como colocar o papel e, de brincadeira, usando uma linguagem que ela domina, disse-lhe que era possível digitar e imprimir ao mesmo tempo. E começou uma fantástica viagem por tempos tecnológicos.
No início, estranhou a força que precisava imprimir aos teclados para que as letras aparecessem. Decepcionou-se ao perceber que, cometido um erro, não era possível apagá-lo. Aos poucos, com desenvoltura surpreendente, entendeu o espírito da coisa. Parecia fascinada com a visibilidade das tarefas que a máquina lhe permitia. Via os tipos se movimentarem para se transformarem em letras, girava o cilindro quando queria mudar a linha. Ela via as entranhas do processo. Master of her domain. No laptop, tudo é caixa preta.
Saiu maravilhada do tec-tec-tec. Catou milho à beça. Soube mais tarde que, ao chegar em casa, pediu à mãe que comprasse uma igual. Eu imaginava que máquinas de escrever já tinham sido banidas do mercado. Que tivessem tido o mesmo destino de penteadeiras, cristaleiras e proficiência em latim. Ledo e ivo engano. Elas não apenas existem, como alguns modelos custam mais caro do que certos laptops. Inventadas em 1867, foram equipamento obrigatório em redações e empresas. Velhos classificados informam que vagas para secretárias só seriam preenchidas por mulheres que tivessem habilidade, entre outras, em datilografia. Cursos de datilografia tinham turmas cheias, a diplomação neles era chave para ascensões profissionais.
Não creio que a nostalgia ocupe o mercado de computadores. Há, no entanto, espaço para uma guerrilha. Gente assustada com a total perda de privacidade no mundo virtual anda recorrendo às velhas máquinas de escrever. Os conteúdos escritos só podem ser lidos pelo datilógrafo. Na cauda deste cometa, surgem profissionais que as consertam e mantêm, máquinas usadas são muito disputadas em leilões. A precursora do Word exibe surpreendente longevidade.
A velocidade do mundo atual reforça, em permanente conflito, o desejo de mais vagar e mais tempo para os mergulhos nas nossas vísceras existenciais. Desejo impossível? Numa velha história da revista Mad, aparece uma senhorinha produzindo bolos artesanais que, aos poucos, passam a ser vendidos numa pequena loja. O negócio prospera, a lojinha se transforma numa enorme linha de produção industrial. Depois de um tempo, aparece ao lado da fábrica uma lojinha, com outra senhorinha, as filas começam a aumentar… É isso.
Abraço. E coragem.