Acordou naquele 15 de novembro de 1963 obcecado com Ronald Cordovil. Ficava imaginando como seria entrar na rua Augusta a cento e vinte por hora. Também especulava: que coragem ficar repetindo versos inspirados como “hi-hi Johnny, hi-hi Alfredo, quem é da nossa gang não tem medo”!  Junto com Ray Charles cantando sem parar I can’t stop loving you, eram blockbusters do programa radiofônico Peça bis pelo telefone, durante o qual as precárias linhas telefônicas ficavam impraticáveis. Não dava para cultivar um gosto musical muito diferente. Os adultos da casa iam, quase invariavelmente, de Ray Conniff, com muito metal e bocca chiusa no bagageiro, Herb Alpert, Domenico Modugno, boleros triviais e alguma coletânea melosa da Reader’s Digest.

Assoviando Neurastênico, também do Ronald, viu a previsão do tempo no jornal. Pura loteria. O índice de acertos era tão pequeno que passava a impressão de que os meteorologistas tiravam conclusões no par ou ímpar. Tempo nublado, com possíveis pancadas. Texto padrão, nada que alarmasse. Resolveu então ir ao Maracanã. O Flamengo completava oito anos de abstinência, o último título carioca conquistado em 1955. Na terceira partida da melhor de três contra o América, o zagueiro rubro-negro Tomires, um gentleman com sangue nas chuteiras, quebrou a perna do atacante americano Alarcón. O grêmio de Campos Sales ficou, então, com dez jogadores (não existia a chamada regra três, que permite substituições durante a partida). Com o alagoano Dida endiabrado, o Flamengo enfiou uma goleada de 4 a 1, chegando ao segundo tricampeonato de sua história.

O jogo era Flamengo e Vasco. Nenhum dos dois tinha um grande time. No Flamengo, os poucos destaques eram o goleiro Marcial, os laterais Murilo e Paulo Henrique e o ponta-direita Espanhol. O centro-avante Aírton Beleza era do tipo trator sem freio. Eficiente, sem frescura. A posição na tabela dava para sonhar com uma arrancada para o título. Os daquele tempo lembrarão que os jogos do campeonato carioca nada tinham a ver com os do desvalorizado torneio de hoje. As partidas contra os chamados pequenos costumavam ser duríssimas, especialmente quando jogadas nos alçapões suburbanos. Ruas Bariri, em Olaria, Teixeira de Castro, em Bonsucesso, e Conselheiro Galvão, em Madureira, frequentavam meu imaginário como estádios assustadores.

Na chegada ao Maracanã, chuva. E não era pouca. Mesmo com o campo pesado, o jogo foi empolgante. No primeiro tempo, o Vasco abriu dois a zero. No segundo, cinco gols. Quatro do Flamengo e um do Vasco. Do gol da vitória, guardo uma lembrança onírica. Sonho que Aírton recebe a bola quicando pela esquerda do ataque, próxima à meia lua da grande área. Ajeita o corpo e, de primeira, desfere uma meia-bicicleta mortal. Gol para os anais do futebol-arte. Se não foi assim, merecia ser. Como nas vitórias épicas que o Nélson Rodrigues só atribuía ao Fluminense ou à seleção brasileira. Naquele momento, eu pude sentir o aroma de grama molhada, o mesmo que me acompanhou em toda a infância, no matinho raquítico da vila tijucana. Afonsinho, pioneiro no enfrentamento da tirania dos cartolas, gostava de jogar em dias de chuva. Sentia prazer na corrente olfativa que misturava terra e grama molhadas.

Alguém consegue imaginar qualquer jogador de hoje falando sobre a festa dos sentidos num gramado encharcado? O Flamengo de 1963, como de resto todos os clubes de então, não tinha marcas comerciais no uniforme. A história dos times se fazia sem a mediação do capital despersonalizado, a empatia da torcida se cozinhava com paixão. Com a difusão das chamadas SAF (Sociedades Anônimas do Futebol), a tendência é agudizar o processo de mercantilização do esporte. As “peças de reposição”, como certos bocós da imprensa esportiva costumam chamar os jogadores, serão trocadas com velocidade cada vez maior. A mais-valia precisa circular, seu Valdemar! A identidade com clubes, camisas, histórias, ilusão de “idealistas”, vai para o ralo. Meu Maracanã é apenas uma memória desgastada. É tempo dos Nosferatus.

Quando saí do estádio, continuava chovendo. Voltei para casa flutuando na primeira nuvem que passou. No caminho, pensei numa trilha sonora para aquela tarde úmida e bela. Que tal Jorge Ben, rubro-negro das antigas, cantando “chove chuva, chove sem parar”? Ah, antes que me esqueça. Ronald Cordovil, mineiro de Manhuaçú, era Ronnie Cord, uma brasa nos tempos da Jovem Guarda.

Abraço. E coragem.