Talvez o melhor da vida é a gente não se conformar, o melhor é buscar o caminho em que cada um se perceba singular. Esse encontro consigo mesmo, livre da dependência coercitiva das ordens familiares, sociais, morais, é uma longa travessia pelo desconhecido. A gente desde criança vai recebendo orientações do que ser e do que não ser, há em cada ser humano uma forte tendência a submissão. Submeter-se aos mandatos e às ordens dos pais, pois só assim a gente se sente amparado e assim se protege da maior angústia da vida que é o desamparo. Em outras palavras, é preciso se proteger da ameaça de não ter amparo, e aí a forma de subjetivação não é ser singular, mas plural, um membro obediente dos desejos da família.
Portanto, o objetivo do tratamento não é se conformar com as normas sociais, nem se encher de prazeres absolutos, mas que cada um possa descobrir que é singular. Somente assim é capaz de inovar em seu pensamento e em seus laços, é capaz de criar. Atravessar os abismos do desamparo em busca de si mesmo, em busca do seu desejo, de lutar por uma vida própria, autônoma. Para não se conformar, para ser rebelde, requer uma mudança de ideia.
A primeira história de rebeldia é a do conde Cosme de Rondó, no ano de 1767. No dia 15 de junho, o conde, com doze anos, filho do barão, afirmou que não comeria “escargots”. Naquela época, essa era uma desobediência grave, e seu pai, o barão Armínio Chuvisco de Rondó, perguntou ao seu filho: “E então?”; e Cosme disse: “Não e não”. Escutou na hora: “Fora da mesa”, e Cosme, em seguida, se dirigiu a um carvalho e lá trepou, da maneira como estava vestido. Houve um diálogo tenso com o pai que o ameaçou, já cansado: quando descesse, se veria com ele. Cosme disse confiante: “Não vou descer nunca”. Assim começa a história do livro “O barão nas árvores”, do escritor Italo Calvino. Cosme manteve a palavra, e a história é o que ocorre com esse quase menino que decidiu não comer “escargots” e viver em cima das árvores toda sua vida. De cima das árvores Cosme pode ver a poesia da natureza. “A primavera onde os esquilos amavam-se com movimentos e gemidos quase humanos, os pássaros se acasalavam batendo as asas, e os porcos-espinhos pareciam ter se tornado macios para fazer os mais doces abraços.” Cosme viveu sempre em árvores, onde encontrou gente que vivia lá, onde pôde conquistar uma jovem de seus sonhos, fez sua vida, encontrou sua singularidade.
A segunda história ocorreu há muitos anos, numa quarta série ginasial, no Ginásio Israelita Brasileiro. A direção da escola determinou que devíamos escolher o professor paraninfo e o fizemos com unanimidade, seria o professor de Matemática. A turma estava feliz, começávamos a nos despedir do querido colégio, e, sem exagero, era uma turma muito boa. Eis quando ficamos sabendo que a direção dissera não à escolha, pois esse professor não era da comunidade. Revolta da turma que deveria ter em torno dos 15 anos mais ou menos. Ficamos indignados e sugerimos um funcionário querido. Então o diretor, irritado, suspendeu a turma de um churrasco que haveria no domingo. Turma chocada, silenciosa, quando um aluno que nunca tinha sido expulso ou suspenso, disse: “Turma, no domingo ao meio-dia, vamos nos encontrar na frente do colégio e vamos todos à churrascaria Sherazade”. O diretor fulminou raivoso: “Abrão, estás suspenso por um mês”. Foi meu primeiro ato de rebeldia, e não pedi diminuição de pena, nem senti pena de mim. Como meus pais viajavam, me senti mais tranquilo e na mesma época peguei uma hepatite e descobri em casa o mundo mágico dos livros. Li os trinta dias que fiquei em casa e hoje agradeço pela pena do velho diretor da velha escola que me abriu o caminho dos livros. O melhor da vida é a gente não se conformar, mas desenvolver a capacidade de desejar, pensar, indo atrás dos sonhos. As suspensões passam, os livros ficam.