Sérgio Porto ainda nem sonhava em ser Stanislaw Ponte Preta. Morava numa casa em Copacabana, roçando a areia da praia. Lá passou vinte e quatro anos felizes. O bairro, como tudo no Rio, entrou no radar da demolição impiedosa, da reconstrução sem alma, da memória desrespeitada.
Certo dia, já no prédio que substituiu a casa, abriu a gaveta da escrivaninha onde costumava guardar contas velhas, caixas de fósforos, caderninhos de telefones que já não valiam. Quinquilharias que vão ficando, mortos que se recusam a ser enterrados. No meio delas, um envelope amarelado com alguns retratos batidos no dia da mudança. Registro “dos cantos queridos daquela casa”.
Sérgio não gostou da descoberta. As imagens o deixaram melancólico. Não dava para pegar um bonde e voltar para a escada que rangia no quinto degrau, o banco de madeira do jardim, a sala de jantar, o quintal. Resolveu rasgar as fotos. “De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa?”. E concluía: “Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras!”.
Tinha razão o Lalau. No entanto, há outra serventia para retratos. Certo, eles podem coçar a memória imediata, mas também desencadear lembranças adormecidas ou soterradas. A imagem original, então, acaba se multiplicando e leva a lugares não percebidos no primeiro olhar. É um processo indomável.
Recebi há duas semanas a versão digital de um livro do Henrique Veltman. Passageiro da Kombi onde se abriga a torcida do América, Henrique está exilado há muito tempo em Santos. Em meio a uma saraivada de memórias, ele recorda o Colégio Hebreu Brasileiro, onde ambos estudamos. Folheio em câmera lenta. De repente, a foto. De 1960. No pátio de cimento áspero, onde ralei joelhos e estraguei muitos Congas em peladas memoráveis, adultos estavam reunidos em torno de uma longa mesa para uma solenidade. Na cabeceira percebo a careca inconfundível, dessas que têm impressão digital e registro no cartório. Só podia ser ele. Tio Schula.
Salomão Rozental nasceu em Iedenitz, pequena aldeia na Bessarábia, no início do século passado. Chegou ao Rio em 1930, fugindo da pobreza e da falta de perspectivas. Como tantos outros emigrantes, trazia no bolso os endereços de parentes de amigos da aldeia natal, que o ajudaram nos primeiros e duros tempos. Conterrâneo do meu avô paterno, acabou se relacionando com os Gruman, que, àquela altura, moravam numa casa em São Cristovão.
Junto com um amigo, trabalhou no comércio de Angra dos Reis e Parati. Lá, conta a saga familiar, introduziu um sistema de crediário, inédito naquelas bandas. As visitas aos Gruman se intensificaram quando Schula percebeu o borogodó de Eva, irmã de meu pai. Dos primeiros passeios na Cinelândia e olhares sugestivos mútuos, acabou saindo o noivado, espécie de estágio probatório das antigas, e, em 1940, o casamento.
Voltando à foto no Hebreu. A presença de Schula revela nele um ativista, voluntário na administração do colégio. Era um sistema comum em escolas judaicas. Os pais formavam um coletivo e distribuíam as tarefas, que iam da contratação de professores à contabilidade geral. Meus primos estudavam naquele colégio e Schula não se limitava a acompanhar o desempenho escolar dos filhos. Dedicava parte do seu tempo ao bem comum, sacrificando lazer e convívio familiar.
Vejo em outra foto que Schula e meu pai participaram, juntos, da criação do primeiro clube judaico da Tijuca, o Monte Sinai, inaugurado em 1959, onde dei vazão à minha canhota formidável nos treinos de futebol de salão. As imagens confirmam um senso comunitário admirável e uma disponibilidade para o trabalho social que me orgulham. Gente modesta e inquieta, que tinha uma rotina desgastante mas não se omitiu e deixou uma herança agregadora fértil. Quantos podem dizer o mesmo?
Num verão quase apagado pelo tempo, eu, meu pai, tio Schula e seu filho David nos hospedamos num hotel barato em Angra dos Reis. À noite, David improvisou uma musiquinha em ídish que aludia às consequências, digamos, gasogênicas que o Toddy de todas as noites produzia no pai. A gente caía pra trás com a gozação, mas quem se esbaldava mesmo era o tio Schula. O careca da foto, o aeroporto de mosquitos bessarabiano, ajudou a construir quem sou. De alguma forma, quem somos.
Abraço. E coragem.