Ao Antônio Maria, que me abriu um baú de espantos.

Tinha jantado com uma grande amiga. Noite alta, levou-a para casa no Gordini. Na volta, precisando de dinheiro, foi ao restaurante Rond Point trocar um cheque. Ninguém hoje pensa numa coisa dessas, mas nos idos de 1964 os amigos também funcionavam como caixa de banco, quebra-galho fundamental em momentos de aperto. Bateu um papo com o garçom da casa, conversa fiada na porta do restaurante para espantar a solidão traiçoeira da madrugada.

De repente, como uma onda irresistível, o peito explode. Cai no chão. Eram 3 horas na madrugada de 15 de outubro de 1964. Antônio Maria sofreu um infarto fulminante do miocárdio. Quando sua cabeça bateu na calçada, estava praticamente morto. Um delegado de polícia, parceiro de causos nos tempos da delegacia na Hilário de Gouveia, estava por perto e tentou uma respiração boca a boca. Nada feito. O cronista e letrista de sambas-canção morria no cenário que tanto frequentara e amara, as ruas, becos, sombras, personagens, da Copacabana dos anos 50 e 60. Em 16 de janeiro de 1963, numa crônica n’O Jornal, Maria garantiu que chegaria aos 50 anos. Afinal de contas, se Rubem Braga e Augusto Frederico Schmidt tinham conseguido, por que não ele? Cardisplicente, seu corpo desabou aos 43 anos.

No dia seguinte à morte de Maria, O Jornal publicou a última crônica do pernambucano. Uma velhinha fala da frequentadora exótica do restaurante Westfalia, que chegava sempre por volta das dez e meia, onze horas, com uma pequena mala. De lá tirava talheres, um copo de prata e o prato. Chamava o garçom e ordenava que retirasse o material da casa de cima da mesa. Fazia o pedido e não se conformava enquanto o filé não chegasse no “ponto certo”. Chata? Grosseira? Criadora de casos? Nada disso. Maria observa que ela era apenas uma “mulher que luta o tempo inteiro pelos seus gestos, não negocia sua comodidade, seu conforto”. Até aí tudo bem, mas vem o arremate, que faria um sambalelê medonho no gueto das feministas xiitas. “A velhinha tão bela e frágil por fora, magrinha como ela é, se a gente abrir, vai ver tem um homem dentro. Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede ‘isto’ de sua magnífica solidão”. Ignorando as circunstâncias do texto, a alma em farrapos do Maria naquela época, as censuretes que “sugeriram” a Chico banir Com açúcar, com afeto fariam picadinho do suposto machismo do cronista. Só homem pode ser digno de sentimentos fortes, afirmativos, até mesmo da solidão? O picadinho tóxico passaria ao largo dos que Antônio Maria consumiu aos baldes na Boate Meia Noite, dentro do Copacabana Palace.

Nos revisionismos em voga, ainda não vi – aleluia! – quem bulisse com Luiz Gonzaga e Zeca Pagodinho. Gonzagão consagrou na Asa branca o trecho: Eu perguntei a deus do céu/por que tamanha judiação?  Zeca começa um samba dizendo Judia de mim, judia. Como judeu, compreendo o desconforto de membros da tribo, mas não me sinto ofendido com a associação do verbo judiar e suas coagulações substantivas/adjetivas com maltratar, comportar-se de forma condenável. A razão é simples. Na origem, é verdade, houve clara intenção pejorativa. No entanto, como ensina mestre Sérgio Rodrigues, a língua é dinâmica. Hoje, a raiz preconceituosa foi amplamente diluída pelo uso cotidiano. Duvido que muita gente faça a associação perversa. Pode-se alertar para a origem preconceituosa, debater “o entulho lexical de inspiração antissemita” (Rodrigues), mas é no mínimo duvidoso que sua supressão contribuiria, hoje, para combater a injúria e o preconceito.

Certas conquistas femininas andam sendo vendidas como mercadorias promissoras. O futebol, por exemplo. Ótimo que as meninas calcem chuteiras sem medo de comparações com BBBs. Beques Botinudos do Bangu. Ocorre que as partidas que assisti não passam de peladas (sem duplo sentido) medíocres. Qualidade inferior às de qualquer torneio de várzea ou ao clássico Canto do Rio x Campo Grande, categoria sub-17, dos meninos. Incômodo e bocejante para quem aprecia o velho e violento esporte bretão. Não é uma questão de gênero. O que dizer das transmissões por locutoras? Repetem os piores vícios de seus congêneres masculinos. Estridentes, estado de permanente e artificial excitação, simulação de grandezas mesmo nas miudezas de qualquer partida. Fico pensando como se sentiria o Antônio Maria, que chegou a ser locutor esportivo nos primeiros tempos de Rio, transmitindo essas gloriosas caricaturas do jogo bem jogado.

Não me interpretem mal. Sou totalmente favorável a que as mulheres participem de todas as modalidades esportivas. Com uma solitária exceção. O sumô. Algumas senhoras já se arriscam no dohyo, arena em que as jamantas se enfrentam. Sei não, mas acho que a rinha de dragões de Komodo faz mais sentido.

Abraço. E coragem.