Os ratos também ficam em pé, sobrinho!

(Mestre Giovanni, em um encontro)

 

Após tantos milênios em busca da própria humanidade, vencendo déspotas de todo gênero, opressores multifacetados, canibais famélicos, aristocratas perdidos na Ágora, homens-deuses enfurecidos, psicóticos medievais, senhores e reis enlouquecidos, descobridores e colonizadores impiedosos, exploradores de mão-de-obra branca, negra, indígena, amarela, azul e verde, manipuladores e destruidores de vidas e famílias inteiras, religiosos obscenos, mentirosos em cátedras, tribunas, púlpitos e praças, legisladores psicopatas, governantes delinquentes e juízes fúteis, finalmente, nos perdemos.

Após todas as lutas, deixando mitos soterrados, reis comendo a grama entre animais, opressores guilhotinados, religiosos limitados a espaços ínfimos e porões de rezas, nós nos perdemos, tristemente, na mediocridade. E as vitórias se transformaram em lixo, resíduo histórico…

                                                                                 se for

                   de Mengele a podre ossada

que estava no descanso do Embu

                                     desfrutando do silêncio dos mortos,

então, não houve pena a isso.

                                   e se for o corpo que boiava, inerte,

nas águas do canal de Bertioga

                            sem que soubessem tentaram salvar,

então, não houve morte a isso.

                           nada importa, víbora maldita!

se não houve pena à carne disso,

                    e se não houve morte ao corpo disso,

está no abismo, na treva, demônio!

                        onde quisera mandar pessoas outrora

     está queimando diuturnamente

       sem paz.

Após tanta filosofia, tantos debates acadêmicos, tanto progresso econômico, entregamos, por fim, nossas almas para os nazistas e fascistas, sob as bênçãos das cruzes, dos padre-nossos e das políticas ocidentais. E, depois de tanto sangue derramado, em nome da democracia e da liberdade, deixamos que os fabricantes de armas e comerciantes de petróleo dominassem o mundo.

Enquanto parecia ainda ecoarem as vozes de Luther King e Gandhi, entre as linhas de Imagine, fuzilamos milhões de civis, de todas as cores e credos. Enganamos todos e tudo, e quando a grande bolha financeira imobiliária em 2008 criou feridas nos nossos olhos incautos investimos trilhões de dólares para salvar instituições financeiras que nos matam a cada dia, em cada fatura e em cada extrato! 

Então, vem o esgoto:

É

 preciso beber

                        continuamente sem tréguas nem ressacas                         

é preciso fumar todo cigarro e outras drogas,

é preciso drogar-se – a toda hora-

e frequentar todos os bares todas as noites

e fazer sexo em todos os banheiros

(muito sexo, em todas as camas, de todas as casas)

sexo sem limites com todas as mulheres

       e com todos

os homens doentes, pedófilos, sifilíticos,

negros, brancos, amarelos,

tarados, e com todos os burros,

e todos os cães, e todos os cavalos, e todos os porcos!

é preciso devolver

D’US

aos hebreus no deserto!

e ficar livres, para matar, e roubar, e cobiçar,

e mentir, e desonrar, e blasfemar, e idolatrar,

enquanto estes pais e estas mães fizerem crianças de mentira

e em todo canto existirem mentirosos

sejam padres, pastores, pais-de-santo, babalorixás,

gurus, médiuns, profetas, rabinos, missionários, apóstolos, monges, freis,

dizimistas, mulás, sheikhs, ateus, agnósticos,

guias, santos, sectários, fiéis, ovelhas, governos, políticos, empresários,

professores, jornalistas, sindicalistas, juristas, economistas,

médicos, agricultores, empregadores, empregados,

cientistas, estudantes, artistas, filósofos,

escritores, poetas, transeuntes, mendigos:

porque há

m e n t i r o s o s!

porque existe fome, e peste, e ignorância,

porque fizeram de D’us uma coisa,

porque existem favelas violentadas, criminalizadas,

e genocídios, e avareza,

[n e u r ó t i c o s,   p s i c ó t i c o s,  e s q u i z o f r ê n i c o s]

e não há diálogo

nem fogueira

nem estrelas

nem luz

nem sol

nem direito

nem lágrima

nem sorriso

nem afeto

nem amizade

nem trigo nem leite nem Poesia nem teto nem honra nem sangue

  nem legumes nem misericórdia nem justiça nem arroz

     nem tolerância nem feijão

nem coisa alguma: nada!

Quando pensávamos que Geni e o Zepelim se referissem aos desmandos das marionetes militares, descobrimos que servem, tanto quanto, para o baixo clero, alto clero e respectivos. Enquanto ainda falávamos dos cafés impedidos no Largo de São Francisco, descobrimos que centenas de delinquentes, escondidos sob a vestimenta do inspirador nome de Congresso Nacional, por omissão ou por ação, por negligência, imprudência ou imperícia, violavam o pressuposto básico da boa-fé e destruíam, por completo (e por tempo duradouro) o princípio de não causar prejuízo a outrem! Enquanto ensinávamos o sistema jurídico pouco eficaz, os seus criadores usavam o dinheiro público, tirado de forma violenta e indefensável do salário (que nunca será renda!), para o pagamento das viagens (e das orgias) de suas mães, de seus irmãos, de seus correligionários, dos milicianos, dos com-terra, dos palacianos, dos com-castelo, das namoradas e de suas amantes televisivas!

Transformamos um sonho delicado e poético em concreto sufocante, sufocante, sufocante… O sonho e a Poesia foram de graça, espontâneos; o concreto, roubado!

E medimos o amor pelo tamanho da conta bancária e tudo que era sagrado, humanamente sagrado (jamais religiosamente sagrado!) foi coisificado, reificado, reduzido a coisas! E transformamos o corpo em uma imagem distante e vazia. E trocamos o abraço, próximo e intenso, por salas virtuais, grupos virtuais, encontros virtuais, por bonequinhos idiotas que riem sem parar, sem razão e sem verdade. E tudo o que era suor e saliva, perfume e sons da pele, foi deixado em uma tela, e transformado em resíduo cancerígeno e asfáltico! E o que era sábio e inteligente pulverizou-se e perdeu-se entre milhares de livros-lixo em estantes de mercado. Obras inteiras, pagas com o tempo diuturno de estudiosos dedicados, foram esquecidas e substituídas por resumos, sinopses e cópias de esquina. Conduzimos às cadeiras dos antigos mestres da literatura alguns pervertidos esotéricos, alguns senadores hipócritas e donos de redes de televisão, e deixamos passar velhos poetas, ainda que “passarinho”, e os deixamos morrer em algum quarto do Sul.

E as nossas mentes reduziram-se a pó, plástico, imagens e outras invenções noturnas e bestiais!

Rompemos o diálogo, aberto e pontual, profundo e analítico, programático e ético, com os professores de nossos filhos, porque queremos que eles os elogiem, digam algo que legitime nossas condutas indesculpáveis. Porque precisamos de boletins com notas para justificar o preço das escolas e não importa quais os critérios pelos quais se obtenham tais notas, afinal, os fins justificam os meios! Não queremos saber o quanto nossos filhos cresceram por dentro, o quanto se tornaram éticos ou o quanto podem interromper a destruição do planeta – que iniciamos! O mais importante, afinal, é que sejam melhores do que todos os outros, mais fortes, mais sedutores, com celulares mais modernos, que ostentem o poder de bullying sobre todos os outros, como sinal ariano de superioridade. Por isso mesmo, fazemos fila dupla na frente das escolas e buzinamos (às vezes até gritamos!), para que os guardinhas vejam nossos carros, para que os professores vejam nossos carros e para que todos vejam os nossos carros. A escola foi transformada em um curral!

Esquecemos a noção e o conceito de estudo, de pesquisa, de investigação! Rezamos por iluminação, queremos que a divindade nos ilumine! Tornamo-nos asnos religiosos, pelo cérebro e pelo coice.

Queremos títulos, diplomas e certificados de participação em cursos, ainda que tenhamos passado o curso inteiro trocando mensagens ao celular, colando e falando mal uns dos outros (e todos do professor!). Ainda que não tenhamos elaborado uma única questão ou criado uma única ideia original, verdadeiramente original, queremos, mesmo, que o mundo diga que somos instruídos, por isso mesmo investimos nas colações de grau e nos bailes de formatura, nos anéis de formatura (colocados em garras!) e nos álbuns, reais ou virtuais! Por isso mesmo, investimos em becas e togas, para nos cobrirmos e escondermos a vergonha da ignorância e as tendências vampirescas. Não queremos ser esclarecidos, não queremos pensar, não queremos desenvolver nenhum raciocínio crítico.

Não queremos aperfeiçoar nada. Não queremos trabalhar em projeto algum. Queremos o projeto alheio, baixado da internet! Apenas precisamos de uma imagem, de uma fantasia e de uma personagem. Não queremos discutir o direito material, substantivo nem seu sentido nas relações humanas, queremos, apenas, saber como se faz uma petição inicial (para iniciarmos um processo do qual nunca mais nos ocuparemos).

Não queremos explicar a quem nos procura quais sejam os seus direitos, mas queremos que ele saiba profundamente sobre os nossos honorários! Não queremos desenvolver uma inteligência e uma ética social, queremos apenas um emprego público e estável.

Não queremos pagar, queremos apenas receber! Não queremos o café que nos inspira às grandes ideias e projetos, queremos apenas a oportunidade de falar qualquer coisa que seja simplesmente mal da vida alheia. Porque descobrimos, agora, que nada é descartável, mas deletável!

Aliás, precisamos mesmo nos alimentar da maledicência infecciosa, da sujeira que formamos no curral, do pó e do plástico noturnos, do serviço público, do resíduo, da lágrima de quem teve seu direito violado e jamais reparado, das pétalas de flores murchas que entregamos no dia da formatura, do guardinha que esmagamos na porta da escola, dos preservativos usados pelos delinquentes no estupro contra a pobre Geni, da mediocridade e do lixo (ainda que virtual), e das ruínas do Judiciário, usado de forma pessoal, econômica e política, para sentirmos, em plenitude evolutiva, a vida vibrante em nossa longa cauda, escura e escamosa, desprovida de pelos, responsável pelo nosso equilíbrio sobre os varais das roupas socialmente sujas!

A

U

S

        C        

      A  U  S  C  H  W  I  T  Z     

W

I

T

Z

e

venho

de

abismos e profundezas:

do hades onde há ranger de dentes enxofre-resíduo-asfáltico

onde as almas se largam e não há dor nem frio não há sede nem fome,

apenas calor de infernos somados que seca lágrimas remanentes

e as almas se alargam e se espremem

e se dilatam e se transfiguram

e se afiguram a coisas que diluem;

eu

venho

de

lagos-densos-desoxigenados-de-fétidas-misturas-fixas

onde não há coisa alguma

e não se enxerga o azul

e não se ouve qualquer canção

e não se toca com a pele

e não se cheiram perfumes

e

não

se saboreia o mel

a fruta-leite-verdura

apenas,

caindo,

VÊESCUTAAPALPACHEIRARUMINA

o fedor de cadáveres abandonados, o desgosto de abismos

do

delírio-cancro-inserto

n

o

s

coturnos engraxados no ódio.

 Às vezes, agrego pessoas perversas, ignorantes, insensatas e infantis, e as deixo por perto (e com determinadas janelas abertas), por não saber exatamente a diferença entre umas e outras… Às vezes, menciono pessoas perversas, ignorantes, insensatas e infantis, para tentar identificar e diferenciar umas das outras… Às vezes, até elogio pessoas perversas, ignorantes, insensatas e infantis, para que mostrem, em ação ou omissão, as diferenças entre umas e outras… Às vezes, deixo que pessoas perversas, ignorantes, insensatas e infantis se manifestem no meu espaço, para que eu perceba nelas a cor, o peso e o cheiro de sua perversidade, ignorância, insensatez e infantilidade… Às vezes, encontro-me no meio delas, na condição de estudioso e pesquisador, a fim de saber quando e como, umas se transformam em outras!

E

então

D’us

chamou hasatan e lhe perguntou: de onde vieste?

de

rodear

a

terra

(respondeu

hasatan

 sorridente)

 

© Pietro Nardella-Dellova

Fonte: A Morte do Poeta nos Penhascos e Outros Monólogos. SP: Edit. Scortecci, 2009, pp. 276-285