Cada dia tem sua luz, cada dia ocorrem novas histórias, os dias não são iguais sabem as crianças. Quando tudo parece igual, repetitivo, tedioso, há uma música tristonha tocando. Há, como escreveu o poeta, a eterna novidade do mundo, há o espanto de ver as formigas trabalhando, as alegrias das árvores, as brincadeiras cotidianas. Hoje é dia de festejar o dois de fevereiro, dia de festa no ar e no mar.
Uma das músicas que mais escutei na adolescência começa assim: “Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, eu quero ser o primeiro a saudar Iemanjá”, de Dorival Caymmi. Alguns anos antes, ainda guri, ia com meu pai, cedinho da manhã, todo dia dois de fevereiro, caminhar na praia de Tramandaí. Íamos ver os grupos vestidos de branco em roda cantando e fazendo oferendas a Iemanjá. E também foi num dia dois de fevereiro do distante ano de 1979 que retornei de Buenos Aires para Porto Alegre após sete anos de vida portenha. Fui só para a famosa capital dos “hermanos” e voltei casado e com a primeira filha. Na chegada ao velho aeroporto, uma surpresa inesquecível foi a presença do Carlinhos Zaslavski, amigo da faculdade que veio nos receber.
A querida Tia Maria, a mais culta das suas irmãs, disse que antes de voltar à cidade natal eu havia mandado a sorte na frente. Gostei da frase otimista, dessa que foi uma das tias que abriram as portas de sua casa, do seu coração. Uma conversa com ela sempre era boa, e até hoje tenho um quadro que ela bordou de uma mulher na janela que era ela.
Todo dia dois de fevereiro recordo Iemanjá e minha volta à cidade onde nasci. Entretanto, os primeiros anos de Porto Alegre foram difíceis, pois compará-la com Buenos Aires era deprimente, além do que me sentia um estranho no ninho. Perdido, tinha perdido os amigos argentinos e os daqui, pois não consegui restabelecer as amizades do passado, sete anos nos haviam mudado. Era um estranho, e ser estranho tem suas vantagens, dá uma visão diferente de tudo, e esse é talvez um dos motivos por que gosto da psicanálise. Pensar o inconsciente é se conectar a um mundo estranho, um mundo que aparece através dos sonhos, dos enganos e das piadas. Além do que, cada um pode perceber o quanto há de estranho na vida, o quanto a gente se conhece, mas também se desconhece. Nada na Terra é tão estranho como o ser humano, criativo e destrutivo, capaz tanto de cuidar como de destruir.
Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, também revela nosso passado, pois esse orixá é o nome de um rio na Nigéria. Foram os antepassados negros que trouxeram para o Brasil nomes como Oxum, Iemanjá, a música, as danças, o ritmo. Mais da metade de nossa população é de origem negra, há toda uma cultura, uma vida que ainda é pouco conhecida e valorizada. Este é um país que sempre tratou mal os negros, índios e pobres, reproduzindo a velha Casa Grande e a Senzala.
Já no dia dois de fevereiro de 1922, há cem anos, era lançado o livro “Ulisses”, principal obra de James Joyce. Esse dia foi escolhido pela editora Silvia Beach porque o escritor completava quarenta anos. “Ulisses” revolucionou o romance moderno, pelos jogos de linguagem, fluxo de consciência, monólogo interior, influência de Freud. Os personagens centrais são: Molly Bloom, esposa do herói, corresponde a Penélope da Odisseia, Stephen Dedalus corresponde a Telêmaco, e Leopold Bloom, que corresponde a Ulisses de Homero. O mundo labiríntico está nessa obra e mais ainda em “Finnegans Wake” (tradução ao português do nosso Donaldo Schüler, que dirigiu um grupo, do qual fiz parte, que estudou anos esse livro).
Dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, eu quero ser o primeiro a saudar Iemanjá, saudar Joyce, e saudar neste ano de 2022 o desejo da volta do melhor Brasil. Não sei, mas, se não ocorrer algum golpe baixo, como em 2018, o nosso país voltará a ser da maioria do povo brasileiro… pelo menos por um tempo.