Por Jean Goldenbaum, Mauro Nadvorny, Michel Gherman, Milton Blay, Nelson Nisembaum e Pietro Nardella Dellova
Palestinos nos veem como inimigos, judeus de direita, que defendem incondicionalmente os governos israelenses conservadores, nos acusam de traição, e os nossos próprios irmãos de esquerda têm dificuldade em nos entender. Em nome do antissionismo, por vezes escorregam para o antissemitismo. E isso é o mais doloroso.
Dói ver grupos de um partido de esquerda queimarem a bandeira de Israel em nome do socialismo, um chargista comparar os palestinos aos judeus gazeados de Auschwitz, um colega jornalista escrever que não existe “solução para a crise no Oriente Médio que não inclua o fim do Estado de Israel”, a mídia progressista abrir espaço para pessoas que vomitam seu ódio aos judeus. Dói ver nossas lideranças condenando o bombardeio de Gaza por solidariedade aos familiares das vítimas palestinas, sem uma palavra sequer sobre as famílias israelenses, sobre o necessário reconhecimento de Israel e de uma paz justa, com dois Estados dentro de fronteiras seguras.
Somos judeus progressistas.
Nosso posicionamento é transparente, não hesitamos quando se trata de combater o presidente brasileiro e seus asseclas nazifascistas, de denunciar as consequências nefastas do neoliberalismo, de denunciar o extremismo de direita que se espalha pelo mundo, de defender a justiça social, a democracia e os direitos humanos. Não há discussão possível, somos límpidos e pensamos merecer ser tratados como tal. No entanto, a cada vez que o assunto é Israel, o olhar dos outros muda. De repente somos apontados, dedo acusatório em riste, por enxergarmos no conflito médio-oriental uma situação muito mais complexa do que a dicotomia fácil que coloca o carrasco, Israel, contra a vítima, palestinos, maus de um lado, bons do outro. Isto é maniqueísmo.
Não somos torcida uniformizada. Somos todos, ou quase, a favor de uma solução de dois Estados, vivendo lado a lado em paz e segurança, conforme o estabelecido pela ONU em 14 de maio de 1948, em sessão presidida por Osvaldo Aranha. Nenhum de nós quer o extermínio do povo palestino. Ao contrário, queremos ver os seus direitos a uma terra, a uma nação, reconhecidos.
Amos Oz, o escritor pacifista israelense, descreveu este processo como sendo um divórcio contencioso, penoso porém necessário.
É verdade que hoje a solução de dois Estados parece um sonho quase impossível, tanto assim que alguns defendem a criação de um Estado binacional. Na prática talvez ainda mais impossível. Na Cisjordânia vivem cerca de 430 mil colonos israelenses em 132 assentamentos. Mesmo assim, vale citar André Malraux, para quem em política só a utopia é verdadeiramente interessante. É ela que deve guiar nossas ações.
Essas colônias são ilegais pela lei internacional. Em pelo menos sete ocasiões, desde 1979, o Conselho de Segurança da ONU reafirmou que elas são “uma violação flagrante do direito internacional”.
Não é possível continuar indefinidamente como está.
Os judeus de esquerda militam pela paz, muitos fazem ou fizeram parte do movimento Paz Agora, pela coexistência, por um lar para uns e outros. Quando uma bomba explode num ônibus escolar israelense, choram as crianças mortas, da mesma forma como choram as crianças de Gaza, vítimas dos bombardeios de Tsahal. Para qualquer mãe a morte de um filho é uma perda irreparável, seja ela israelense ou palestina. A dor no peito é a mesma.
Nos meios progressistas, frequentemente Israel é chamado de Estado genocida. O que os governos israelenses efetivamente não são. Não se pode comparar o que acontece na região com o genocídio tutsi em Ruanda, o armênio pelos turcos, o de Samudaripe, no Camboja, o massacre de Srebrenica, o extermínio dos índios, nem sequer com as vítimas da “imunidade de rebanho” arquitetada pelo governo federal.
Israel não é um Estado genocida, mas isso não impede que seja um país colonizador de terras que não lhe pertencem pelo direito internacional, um pais expansionista, em nome de um pseudo destino bíblico .
Com Ariel Sharon, Israel deu o passo que faltava para privilegiar a segurança em detrimento da paz. As negociações foram quase abandonadas e a solução de dois Estados arquivada. Foram implantadas colônias populosas na Cisjordânia, para onde seguiram milhares de fundamentalistas religiosos e extremistas de direita, tornando impossível a imprescindível continuidade territorial palestina.
Israel é responsável e culpado. Sua atitude, indefensável. As colônias têm de cessar e as negociações precisam ser retomadas. Só que aqui entra uma questão fundamental: quem seriam os interlocutores ? Os palestinos estão divididos, o Fatah, que controla a Cisjordânia e a Autoridade Palestina, não dialoga com o Hamas, que tem o poder em Gaza. O Fatah reconhece o direito de Israel à existência, enquanto o Hamas, em seus estatutos, jura combater Israel até o seu desaparecimento do mapa. Do lado israelense, a população se acomodou com a situação relativamente estável, com conflitos episódicos que os sucessivos governos de direita consideram administráveis. É sintomático o fato ocorrido durante um recente confronto com o Hamas. Enquanto os aviões israelenses bombardeavam o prédio ocupado pela imprensa internacional, em Gaza, os habitantes de Tel Aviv estavam nas ruas festejando a vitória no concurso Eurovision, como se a população israelense estivesse vacinada contra a guerra.
Durante mais de dez anos, o status quo foi conveniente tanto para Ismael Haniyeh quanto para Benyamin Netanyahu e agora o é para Naftali Bennet (que tem se mostrado ainda mais à direita que seu predecessor).
Então surge alguém dizendo que se Israel é colonizador é porque seu lugar não é ali, no Oriente Médio. E assim entramos na intrigante questão do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro? Quem estava lá antes?
Os judeus foram expulsos daquela região? Sim, ali foi escrita parte da história de seu povo, fato que justifica amplamente o retorno e a decisão da comunidade internacional, de consciência pesada por ter fingido que não via o holocausto. Na Antiguidade Oriental (Oriente Médio), os hebreus, também chamados judeus ou israelitas, habitavam Canaã (território do atual Estado de Israel). As raízes do judaísmo estão ali, fincadas naquele solo. Isso ninguém pode negar.
No entanto, os palestinos ali estavam nos séculos XIX e XX, tendo sido expulsos de suas casas, de suas terras, famílias foram separadas, muitos tornaram-se refugiados. Originalmente, os palestinos se estabeleceram em uma área entre a Jordânia e o atual Estado de Israel. A dominação deste território, que no fim do século XIX contava com cerca de 500 mil habitantes, remete à crise do Império Otomano, que anteriormente controlava a região.
As colônias agrícolas de palestinos começaram a ser fundadas no ano de 1862.
Isso tampouco se pode negar.
Muitos judeus europeus, influenciados por pensadores do final do século XIX, começo do XX, pensaram em se assimilar, inspirados nos valores da Revolução Francesa, que pregava a igualdade de direitos para todos. Até mesmo o jovem Theodore Herzl (antes de se tornar o pai do sionismo político) chegou a defender a conversão ao cristianismo, antes de se dar conta, ao cobrir o caso do capitão Dreyfus, acusado de espionagem por ser judeu, que o antissemitismo não tinha sido abolido na “pátria” dos direitos humanos.
O jornalista israelense Ari Shavit, em Minha Terra Prometida, descreve magistralmente esse nó que está no cerne do conflito israelo-palestino. Os dois povos têm razão e, assim sendo, não há solução satisfatória. Por isso, as concessões precisam ser imensas, mexendo em sentimentos profundos de injustiça. Porém, assim deve ser.
Os palestinos sofrem ainda mais por verem seus ex-amigos árabes lhes virarem as costas. Hoje, os habitantes, sobretudo de Gaza, só podem contar com os apoios do Qatar e do Irã xiita, este interessado em se impor como líder regional em contraposição à Arábia Saudita wahabita. Teerã financia o Hezbollah, no Líbano, o Hamas e a Jihad Islâmica, movimentos armados que nunca aceitaram a partilha da região nem a existência de Israel.
A tragédia palestina também é político-religiosa, na medida em que o Hamas tentou impor a sharia, a lei islâmica estrita, em que meninas e meninos não podem frequentar as mesmas escolas, as mulheres não têm seus direitos nem sua segurança reconhecidos, são vítimas da violência doméstica, o desemprego entre as mulheres chega a 71 %, muitas meninas são obrigadas a se casar ao chegar à puberdade, homossexuais são presos.
Os moradores de Gaza são miseráveis, têm eletricidade duas horas por dia, o desemprego atinge metade da população, só 10 % têm acesso à água potável e, para piorar ainda mais, o Hamas acusa a Autoridade Palestina de se aliar à Israel e Egito no bloqueio à Faixa.
Muitas doações da União Europeia para obras de infraestrutura são desviadas para outros fins.
Israel é responsável pela situação em Gaza? Claro que é, mesmo se os seus soldados saíram de lá em 2005. Mas não é o único. Uma análise objetiva (na medida que isso é possível) deve responsabilizar todos os integrantes do puzzle, inclusive lideranças palestinas, algumas das quais acumularam fortunas de origem nem sempre transparente.
Israel é um país segregacionista? Sim, os árabes não têm os mesmos direitos dos judeus, mesmo se um partido árabe israelense, muçulmano, hoje faça parte da coalisão governamental. Há de se reconhecer que existe uma espécie de apartheid em Israel. Prova, como se necessário fosse, que Israel não é para amadores e não deva ser visto com olhos apaixonados da arquibancada de um Fla X Flu.
Somos judeus de esquerda. Talvez seja difícil para quem não o é entender por que Israel é fundamental para nós, e ainda por cima somos majoritariamente pouco religiosos, ateus ou agnósticos, cem por cento laicos (conceito diverso de ateu, e que significa dizer: somos a favor do Direito, e não da Religião, organizando a política e a estrutura do Estado, aliás, do Direito dando a todos, religiosos e irreligiosos, a faculdade de viver em pluralismo e diversidade), muitos casados com não judeus.
Israel é criticável e criticado. Porém, que o seja “só” por seus erros, que não são poucos.
Israel é o nosso seguro de vida. Estamos intimamente convencidos de que se Israel desaparecer, como querem os antissionistas, nós também desapareceremos, mais cedo ou mais tarde. Por quê? Porque sempre foi assim; a história nos ensina. Todos conhecem a Shoá e seus 6 milhões de judeus assassinados. O que alguns talvez não saibam – ou finjam não saber, é que a perseguição aos judeus é muito, muito anterior a Hitler. Historicamente, o judeu é o «outro», o bode expiatório, que deve ser discriminado, varrido do mapa.
Os judeus fazem questão de ter seu próprio país porque passaram milênios ameaçados de extermínio.
Israel não nasceu da necessidade de celebrar ser judeu, mas do direito de existir sem perseguição.
Nunca os judeus foram tão assimilados quanto no primeiro terço do século XX, na Alemanha; deu no que deu.
Somos ao todo 14 milhões de judeus, representando 0,2% da população mundial. O mínimo que se pode dizer é que o barulho é desproporcional ao que representamos. E isso tem nome: antissemitismo. Com certeza, cada um de nós tem histórias a contar sobre atos de discriminação sofridos durante a vida, relembrando que somos todos, sem exceção, filhos, netos, bisnetos de refugiados, de perseguidos, de expulsos.
Muitos migraram da Europa central e do leste para o Brasil, após a Primeira Guerra, vítimas dos pogroms na Europa.
“Meus avós”, conta o Blay, “migraram da Polônia e Bessarabia para o Brasil, após a Primeira Guerra, vítimas dos pogroms na Europa. Paula, minha avó, quase moribunda, num gesto de derradeira vontade fez questão de se naturalizar brasileira, pois não queria ir embora polonesa, como filha de um país antissemita. Uma de suas irmãs, que queria muito estudar, negou-se a partir de Cracóvia, obteve no mercado negro uma carteira de identidade como prostituta e assim pode prosseguir os estudos, o que lhe era negado como judia. Acabou morrendo em Auschwitz, a poucos quilômetros da escola, antes da existência de Israel.”
Casos como este pontuam a nossa história.
Nosso papel, como progressistas, é tentar restabelecer a verdade e a justiça. Sem concessões, reconhecer os direitos, deveres e sofrimentos de todos – judeus e muçulmanos, palestinos e israelenses. Sem exceção. Em nome de nossa integridade, temos o direito de ser reconhecidos dessa maneira, antes de mais nada pelos companheiros com quem dividimos valores e para quem a fístula do antissemitismo ainda é – infelizmente – um abcesso a ser extraído.