Na véspera do segundo turno da eleição para presidente, em 2018, eu estava em Botafogo. Fui assistir o filme uruguaio A noite de 12 anos, baseado nas condições degradantes dos presos políticos durante a ditadura militar do Uruguai (1973-1985). Já tinha lido o terrível livro Memorias del calabozo, escrito por dois daqueles presos (Maurício Rosencoff e Eleuterio Fernández-Huidobro), estava bem informado sobre o assunto.

O clima no cinema era de profunda emoção. Um pouco de imaginação e dava para ouvir os corações acelerados. No dia seguinte, um apoiador da ditadura civil-militar brasileira podia ser eleito presidente. Terminada a exibição, as palmas vieram num crescendo e, com elas, o grito: Ele não! Ele não! A gente saiu de lá um pouco aliviado com o extravasamento da tensão pré-eleitoral, já conhecíamos o autoritarismo dos milicos, não queríamos acreditar num replay. As imagens na telona projetavam parte do horror que vivêramos. E, no entanto, foi ele sim.

Três anos de mergulho no esgoto, em que pé estamos? Vamos ser francos. Ninguém poderia imaginar as proporções do desastre que nos abalroou. Certamente dava para desenhar um governo medíocre, antipopular, sectário no plano internacional. O que veio, porém, foi avassalador, atingindo todos os setores da sociedade. Constatamos, entre assustados, incrédulos e indignados, a existência de um país que desconhecíamos e permanecia, dormente, a poucos milímetros abaixo da superfície sócio-cultural. Os boçais ganharam espaço para espalhar seus acessos dementes. O furor reacionário de setores religiosos saiu da penumbra. Em recente entrevista, Muniz Sodré, grande praça e um dos maiores pensadores da comunicação do país, junta os cacos: “O real que me cerca é catastrófico. Percebi que desconhecia a parcela do povo brasileiro que elegeu o atual governo. É uma parcela protofascista, etnocida, que sofre pra burro, mas pactua com os detentores de privilégios. É um choque muito grande. O Brasil se revelou para mim ainda mais brutal do que na ditadura militar”.

Na aurora de 2022, o que enfrentamos nós, que conseguimos a duras penas manter a sanidade? A grande prioridade é derrotar Bolsonaro em outubro e devolver à latrina o amontoado de energúmenos que ele tirou da cartola. Cabem algumas observações. A luta é para banir o retrocesso e recolocar o país num mínimo de escala civilizatória. Sem, entretanto, qualquer ilusão de que a reconstrução será rápida e que, qualquer que seja o vencedor, haverá mudanças importantes nos grandes problemas estruturais brasileiros. Estas só virão em outro modo de produção material e subjetiva, numa conquista que passa longe de eleições.

É essencial descer do salto alto e não subestimar a força do negacionista pérfido. As campanhas eleitorais se mudaram, em grande parte, para as redes sociais e nelas impera o vale-tudo. Além disso, o elemento ainda tem a caneta para distribuir benesses e imantar apoios. Em 2018, subestimá-lo foi um erro pelo qual ainda pagamos. Pessoa que respeito dizia, nas proximidades do pleito, que a burguesia não ia embarcar naquela canoa espiroqueta. Pois embarcou, e boa parte dela ainda está lá, como demonstram pesquisas do Datafolha.

Outra questão importante é o futuro do bolsonarismo. Haverá bolsonarismo sem Bolsonaro? Não dá para ser categórico na resposta. Se entendermos bolsonarismo como um movimento de corte protofascista, fundamentado na histeria anticomunista, na promiscuidade Estado-religião, no ultraconservadorismo em costumes, é bem provável que sobreviva nas franjas das relações sociais, influindo na opinião pública e sendo representado no parlamento e em entidades corporativas. Se conseguir a adesão de quadros mais articulados do que o ex-capitão, pode se consolidar.

Quem acha que a onda bolsonarista não passa de gripe passageira, melhor seria que prestasse atenção em algumas pesquisas. O Datafolha, por exemplo, constatou que a maioria da população brasileira (52%) acha que comerciais com casais homossexuais devem ser proibidos na televisão para proteger crianças. Quase metade (44%) acham que o Brasil corre grande risco de se tornar um país comunista dependendo do resultado da próxima eleição. Estamos falando de terreno fértil para discursos reacionários.

Por fim, me preocupo com certa tendência salvacionista/autoritária de parte da esquerda. Vou dar um exemplo que me alarma e entristece. Recentemente, o jornalista Fernando Morais, que nos presenteou com A ilha e Olga em tempos sombrios, declarou apoio a Jones Manoel para o governo de Pernambuco. Jones é um jovem e brilhante quadro do PCB. O apoio de Fernando foi apenas um registro de simpatia, ele não vota em Pernambuco. Pra que, zabelê? Choveram nas redes sociais acusações sórdidas a Fernando, desqualificações estúpidas a Jones, acusações abjetas, ignorantes e totalmente infundadas ao PCB. Os “acusadores”, identificados com a candidatura Lula, parecem não suportar qualquer tipo de crítica ao seu ídolo. Confundem luta política com traição. Ora, parece que a História ensinou os estragos do culto à personalidade. O menor deles é a atrofia do pensar.

Abraço. E coragem.