Deixei meu filho na Piccola Caffetteria, comendo seu tramezzino, e fui para o Quartiere Ebraico, bem atrás do Castello Baronale, com todas as saudades atemporais da Sinagoga Scuola, a que os locais chamam, amedrontados, Casa Degli Spiriti. Chamam-na assim porque muitas atrocidades ocorreram contra os ebrei, como são chamados os Judeus italianos. Houve muita perseguição e morte, dentro e fora da Sinagoga, com requintes de brutalidade. Ouve-se que algumas crianças foram mortas sobre a Bimá, a mesa sobre a qual se coloca o Rolo da Torá nos serviços religiosos judaicos. 

                                                                                     Sou

homem

                        de marcas do tempo, que nas mãos desenha

                  cicatrizes do labor…

          no peito um constante brado de liberdade

                                                       ecoa infinitamente peito e na alma                                                                  

                                             amontoado calor de brasas destas almas vividas.

                                       nos pés as asas me levam a quaisquer lugares, e céus,

                             e universos, e mares…

Por isso mesmo, os moradores dali dizem ouvir vozes, e sombras se movimentando, pelas pequenas janelas do prédio. Dizem que as pedras das paredes da Sinagoga ficam respingando o sangue das vidas que ali foram assassinadas e que, agora, buscam vingança contra seus opressores e descendentes.

Ao chegar naquele pátio da Via Olmo Perino, diante do prédio da antiga Sinagoga, fui tomado por um sentimento de dor, mas, igualmente, de esperança e gratidão. Cheguei-me à antiga porta de madeira, fechada, e estendi minha mão, como que acariciando as marcas de uma antiga mezuzá, ou agradecendo, ou, simplesmente, testemunhando alguma vida em mim, e ao encostar minha mão na porta, fui tomado por pensamentos e sentimentos que vêm de longe, de muito longe, e que me levam longe, para o muito longe…

Choramos e esperamos, nesta triste Galut, um tempo de paz em que possamos simplesmente viver. Ali, no Quartiere Ebraico, diante da velha Sinagoga, desta minha curiosa Casa Degli Spiriti, caminhamos e brincamos tantas vezes no pequeno pátio, então florido, onde vivemos por séculos, meus olhos se enchem de luz e esperança. Também ouço vozes, mas de outra natureza.

Estava quieto diante da porta fechada da Sinagoga. Às minhas costas, exatamente atrás, para cá e além do Castelo, ficam as três Igrejas Católicas, Santa Maria Assunta, San Pietro e San Francesco. Mais distante, do outro lado da cidade, à minha esquerda, para além da Via Appia, ficam duas Chiese Evangeliche, e à minha direita, há moradias de um grupo de muçulmanos que atuam na exploração de serviços telefônicos internacionais.

E eu, parado ali, senti um calor invadir meu peito. É impossível não chorar, porque ouvi o clamor das vozes de centenas de Judeus e Judias, levados e mortos, pelos religiosos de fora, pela sua “santa” inquisição, pelos fascistas, nazistas e outros canalhas, perversos, injustos. E ouvi, também, os sinos badalando incessantemente, ouvi alguma gritaria conjunta de Igrejas evangélicas, e ouvi vozes ininteligíveis islâmicas. Mas, do silêncio estranhamente respeitoso da velha Sinagoga, ouvi, também, a voz inconfundível da esperança em Mashiach:

 … o Espírito de HaShem está sobre mim,

porque Ele me ungiu, para pregar aos mansos e revigorá-los:

          enviou-me a restaurar os chorosos de coração,

            a proclamar liberdade aos escravizados,

              e a abertura de prisão aos presos…

Porque andamos perdidos nas sombras de tantos séculos, sem direção nem contentamento, e o sentido de Mashiach tornou-se um peso milenar e o talhe do teu reino mal pode ser reconhecido. Nos últimos dois milênios fizeram-no com mil faces e, em mil lugares e, sendo tantas, ninguém a conhece. Nem podem esperar e nem podem ouvir esta voz.

Mas, alguns esperam Mashiach e acreditam que o avistarão sobre os montes de Israel, com os seus pés em movimento, ensinando a renovação do Conhecimento e o Retorno a um tempo em que Poetas eram reis em Jerusalém. Rei-Poeta, e Poeta que ensinará algo de mais profundo sobre a Face do Eterno. São aspectos de Mashiach que me encantam e me fazem, em determinada medida, ouvir sua voz. Mas, espero, também, que as vozes das vidas retidas nas paredes desta minha Sinagoga sejam liberadas com atos de justiça! A voz de Mashiach fará ouvir a paz, e anunciará o bem, fará ouvir a plenitude e que dirá a Sião:

O Eterno reina! … celebra as tuas festas e cumpre os teus votos…

E ele será, então, finalmente, a imagem e a semelhança do Eterno, e nele serão soprados os Sete Espíritos do Eterno. E, com ele, o Reino será ligado à Coroa… Malchut à Keter!

Quando ele nascer (e os profetas e sábios Judeus disseram que nascerá!), o Eterno se alegrará de sua Justiça, de sua Mansidão, de seu Conhecimento de Torá, de seu Cântico e de seu Hallel, e nele as obras da “criação” serão finalmente terminadas.  Sob seu Reino os homens encontrarão as fontes de conhecimento, de sabedoria e de inteligência e não haverá fome sobre a terra, nem terror, nem injustiças. O cego não errará o caminho e o surdo não será privado de entendimento, e ninguém será enganado, pois ele ensinará o equilíbrio e como suplantar a árvore do aprofundamento do bem e do mal, como vencer as inclinações para o bem e para o mal e, assim, levará ao caminho de volta à árvore da vida, e apontará a Coragem e a Força!

Então, HaShem, finalmente, ficará satisfeito e ouviremos a sua voz plena de alegria (e de bereshit) ecoando pelo espaço: … é muito bom…

Mas, por agora, ninguém conhece o seu perfume, os seus olhos, as suas mãos, os seus cabelos, a sua barba, o seu caminhar, o seu partir do pão e o seu intenso vinho.

Ninguém sabe como será aquela mulher que ele amará nem como serão seus filhos, porque ele trará em si os olhos e a música de David, e a Poesia e juízos de Sh’lomò, de cuja descendência nascerá. Ninguém viu, ainda, o seu sorriso, o seu modo de abençoar, o seu cântico, a sua amizade, a sua presença, o seu sangue, o seu espírito e, não obstante, ele é o desejado de todas as nações. Porque todos os homens e mulheres desejam um tempo de plena paz e descanso!

como pastor apascentará o seu rebanho;
entre os seus braços recolherá os cordeirinhos,
e os levará no seu regaço:
as que amamentam ele guiará mansamente…

Mas, por que ainda não o conhecem antecipadamente? Porque veem mal, com os olhos obscurecidos de religião, de teologias e de intrigas medievais. Veem com más intenções, e por isso não enxergam; não ouvem e não escutam. Ouvem mal, conforme as conveniências e, se o encontrassem não lhe reconheceriam.

Provavelmente, o desprezariam porque não seria grego ou romano, não seria russo nem alemão. Desprezariam porque ele seria um Judeu – o melhor dos Judeus! Desprezariam porque ele não nasceria em um calendário gregoriano nem daria início a um novo calendário, como querem os homens platônico-aristotélicos, nem seria um Judeu nascido em terra estranha, como querem algumas escolas e grupos. Desprezariam Mashiach porque ele teria em um dos braços, a Torá, e no outro, os Nevi’im e o Shir HaShirim. De um lado, acompanha-lo-ia Moshè rabenu, e do outro, os Profetas e Poetas. Desprezariam Mashiach porque o seu coração é uma força nos Tehilim, e sua alma será formada nas deliciosas Festas Judaicas e nas Canções que enchem nossas vidas de contentamento.

E somente aquele que ouvisse, repetidas vezes, o seu pai declamando delicadamente os versos dos Cânticos de Sh’lomo para sua terna esposa; e ouvisse, também, a voz e a força dos Provérbios e da Meguilat Ester, quando estivesse junto com seus irmãos, ao redor de uma mesa, iluminada pelas chamas de um duplo candelabro, e perfumada pela delícia de Chalôt, somente assim poderia saber como será o Mashiach.

Os outros o desprezariam e o odiariam porque na sua boca e no seu coração os Ensinamentos jamais seriam uma nova religião (e sequer uma religião!), mas a luz, a renovação, o azeite, o ser humano pleno que nos falta – a perfeita leitura e interpretação da vontade do Eterno: amor-amar, superando as faces do bem e do mal, com o fogo da Ruach HaElohim!

façamos o homem à nossa imagem e semelhança

Os homens maus, poderosos, senhores do império de ouro, prata, ferro e barro, mataram milhares de crianças judias pelos milênios, esperando que Mashiach fosse morto – e continuam matando e comendo a carne de seus filhos, com seus votos ao vento.

                                                                                           No grito

                                 do meu silêncio

                        e na angústia da minha alma: choro por ti!

                  e com todos os ressentimentos,

                                e com todas as frustrações,

            e com todas as cadeias eloquentes…

                               e no reclamar de uma barriga vazia;

                     e no caminhar de um velho pelos longos anos,

                   e estas desgraças e torturas de coturnos pesados:

                       a liberdade nem é conhecida, nem existe…

                             na calada da madrugada… seguro os livros, trêmulo,

                          ler é perigoso!

           no calabouço da miséria, em profundezas infernais,

                     em noites melancólicas e noites alvoroçadas,

                 e noites de vasta maldição, quero gritar e tapam minha boca!

              a estrela da manhã me aguarda, a lua me contempla!

                     o espaço quer rir:  conhece o passado – e o futuro?

                      mas eu estou vivo agora…

                     a casa de famintos não tem alegrias,

                         no olhar desnutrido de uma criança…

                           e na literatura, e na história,  e na presente existência,

                                a caneta e palavras – palavreados, discursos vazios

                                 e meus sonhos poéticos.

E hoje, vestidos de Babilônia, de Roma e Edon, culpam-nos por uma cruz forjada na mentira e na ignorância dos ecos do Coliseu e insistem que devemos morrer por ela, e por causa dela. Em dois mil anos de necrofagia que não termina, num discurso de morte que não termina, numa procissão mórbida que não termina, em cruzadas genocidas que não terminam, em inquisições necrófilo-religiosas que não terminam, em holocaustos que não terminam, em bombas que não se calam – embriagados do nosso sangue, exigem que nos dobremos diante dos seus deuses gregos e romanos, e dos seus profetas orientais tresloucados, bem como de seus missionários de perdição! Exigem que ouçamos seus pregadores delinquentes e nos dão o fel da exclusão social!

E as filhas, orientais e ocidentais, desta absurdidade religiosa, vendem a ilusão in memoriam (aos pedacinhos) nas praças, nos salões alugados, nos templos de isopor, nos canais de rádio e televisão mal adquiridos, nos campos de futebol, nas capelas, nas basílicas, nas igrejas, nos terreiros, nos centros, nas encruzilhadas, nos sagrados Shopping Centers, nas Bolsas de Valores, nos chaveiros, nas lojas, nas Torres Gêmeas, nas peregrinações, na estampa maledetta do dinheiro, nos porta-aviões, nos discursos vazios, nas lojas de hambúrgueres, nas árvores, nas bolinhas de natal, nas ceias de natal e no frango assado de natal e nos dias de dezembro. Aliás, dezembro e novembro inteiros, porque os pedacinhos da ilusão devem mover o comércio!

Ah, esse Mashiach! Se os homens o encontrassem em quaisquer lugares, certamente o desprezariam, porque não nasceria em dezembro! Porque será do sangue hebreu de Abraham, Itzchak e Ya’akov, e porque seria instruído/instruindo por Moshè rabenu, e porque é o coração e o gemido de Yehoshua, dos Shoftim, dos Melajim, de David, de Sh’lomò, de Yeshayahu, de Yirmiahu, de Yejezkel, de Daniyel, de Hoshea, de Yoel, de Amós, de Ovadiá, de Yoná, de Mijá, de Najum, de Javacuc, de Tz’faniá, de Jagai, de Zejariá, de Malají e de todos os Judeus de todos os tempos. Porque é a ideia de plenitude. Será ele a perfeita harmonia entre Criação e Creador (não Criador), porque chora desde sempre, com gemidos de quem quer estar em Jerusalém – e ninguém pode amá-lo, deseja-lo ou compreendê-lo, se antes não souber amar Jerusalém, o Beit HaMikdash e a Torá!

Ah, esse Mashiach, meu irmão, jamais poderia ter nascido de Atenas, em meio às festas e bacanais, porque não é filósofo: é a própria Sabedoria. Jamais poderia ter nascido de Roma ou de suas Províncias, em meio aos festins e orgias, porque não é jurista: é a própria Justiça.

Somente poderá nascer em Judá, em meio às Festas judaicas de Pessach e Shavuot, Yom Kipur e Sucot, e na alegria de um Shabat, porque ele é, e esperamos dele, o Shalom

                                         Acordei

                                             e o verso continua

                                           a Poesia nua e despretensiosa

              (parece-me vitoriosa em qualquer espaço),

um laço em que estou preso, e teso, e absorto, e levado,

e condenado a este verso intenso,

escravo de um amor imenso e feliz

que não quis fosse assim entre mim e ela,

        mas, nem bela a criei, encontrei, apenas, vagando sozinha,

não era minha e de ninguém, também não me fiz

                                                      poeta por vontade

(somos metades que se completam)

corpos que despertam emoção e carinho,

e somos o vinho que embriaga!

e este verso que a afaga espontâneo, assaz momentâneo,

sem critério nem espanto, é o canto que me persegue

                               e se ergue, austero, em qualquer instante e, triunfante,

                                                          este verso continua…

E, então, voando nos meus pensamentos, olhei ao lado da porta da antiga Sinagoga, e vi uma pedra, uma pequena pedra. Tomei-a e a depositei-a no chão na frente da porta, em memória das centenas de vidas judias que tombaram diante do furor bestial eclesiástico, nazista e fascista, durante os séculos naquele Ghetto, cujo sangue e cultura homenageiam cada uma das linhas da Torá, e das vozes… As vozes judias que teimam em não calar pelos séculos e séculos até que possam estar em algum lugar com suas famílias, Tradições, Festas e seu Mashiach! Até que possam estar com seu D’us!

                                                                                  Sou                                                                                                  

                  uma

                             seta

                                               na

                              madrugada

                        que

               não

        busca

                  a

                        amada

                                        tão-somente…

   esta voz

                      misturada

                             à

                         lagrima,

                      que

                      grita

               aflita

     sem

 descanso

                                         busca

                                                                  D’us!

© Pietro Nardella-Dellova

A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. Editora Scortecci, 2009, pp 40 e segs..