Em certa ocasião, conheci Patrícia, – judia do Rio de Janeiro. Eu estava de passagem por São Paulo. Ambos tínhamos os olhos (e o coração) voltados para Israel, e caminhamos pela noite, quase de mãos dadas, relembrando a história de um povo que insiste em viver, e insiste em não morrer! Sua filha chama-se Havá (Chavah), pois tem a ver com vida, especialmente com a geração da vida. Daí traduzir-se Havá como mãe da vida. E é nesse sentido que colocou o nome nela. Afinal, nada no mundo judaico é ao acaso e, ao escolher o nome quis indicar-lhe uma direção e um sentido.
Deixei o vinho na taça e discorri sobre o fio feminino judaico que vai tecendo a vida e a experiência judaicas. Já era bem tarde, eu lhe disse coisas sobre a Torá e sobre o Judaísmo.
O tesouro começa nas Dez Palavras! O início da nossa liberdade e das responsabilidades… Responsabilidade anda de mãos dadas com liberdade, principalmente, para os judeus de todos os tempos. As Dez Palavras, sulcadas nas Luchot HaBrit (Pedras da Aliança), fundamentam todas as outras 603 Mitzvôt (Palavras-Princípio). São 613 Mitzvôt que funcionam como material de construção!
Atualmente, não é possível cumprir todas, mesmo em Israel, considerando que muitas dependem do Beit HaMikdash (o Templo). Outras dependem de um Rei, Mashiach! A integridade das Mitzvôt e de seu cumprimento apenas seria possível se todos os “atores” estivessem presentes: mulheres, crianças, Mashiach, Sacerdotes e, logicamente, isso só será possível no distante tempo de Mashiach.
As Mitzvôt são partes integrantes da Torá, mas não são a Torá! Esta, o todo; aquela, a parte. Nós, judeus, existimos por causa da Torá! E um dos aspectos fundamentais da Torá é o elemento feminino, desde o processo de Criação. Principalmente, quando revisitamos as Matriarcas. Elas foram determinantes para a formação de Israel. Veja-se o caso dramático de Rivkah, tendo que orientar seu filho, Ya’akov, a assumir a bênção que era, do ponto de vista legal, de Esav. Este havia causado profundo sofrimento a Itzchak e à própria Rivkah.
Ela teve que decidir porque existem estágios em que uma pessoa se encontra em decadência mórbida – sem condições de retornar a um ponto. Eis o caso de Esav!
Quando Sarah determinou que Ishmael fosse embora, apesar de causar dor em Avraham, estava vendo algo que ele não poderia ver naquele momento, pois o excessivo amor de pai (na velhice) fazia dele um incauto em relação ao comportamento de Ishmael. Avraham amava os dois, mas, Ishmael já tinha com ele 13 anos de experiência…, então, o amor de Avraham o tornava cego naquele momento, por isso entra Sarah para definir a história judaica. Ishmael tinha educação mais egípcia, dada pela sua mãe Hagar, que não tinha nenhum compromisso necessário com o povo hebreu. Hagar olhava a riqueza e o status de Avraham, enquanto Sarah havia recebido os discípulos de Shem, o melk tzdek (rei de justiça), o filho de Noach. Então, sabia mais por conta da instrução que recebera de Shem. Ele era o grande Mestre daquele tempo, e havia instruído Avraham, mas, em particular, instruiu Sarah, por isso mesmo ela conhecia o futuro de Avraham. Veio de Sarah (e não de Avraham) a educação de Ytzchak.
O papel da judia é determinante, mas, sempre foi o pai a determinar o grau de judeidade, haja vista, pronunciarmos sempre “O D’us de Avraham, Ytzchak e Ya’akov”, e sabermos, também, que tal o grau de judeidade, tal o apego à Torá! Historicamente, judeus são os “b’nei Yisrael”, é inegável que a educação e formação são incumbências da mulher. Uma formação na Torá e em suas Mitzvôt e nas Festas Judaicas.
A Torá, as Mitzvôt, as Festas Judaicas, Israel (povo e terra), Jerusalém, os Profetas, o Talmud, entre outros conhecimentos, cultura e direitos judaicos, não podem ser negociados em nenhum tempo, pois, tudo é “perpétuo”. Não podendo cumprir as Mitzvôt (as que não podem ser cumpridas) já seria motivo de lamento… e é o que fazemos diante do Kotel, pois atrasamos, com isso, a nossa própria construção. E nisso mesmo orientamos nossos filhos e filhas, desde cedo, dando a eles a oportunidade de vivenciarem o ciclo da vida judaica, em todos os sentidos e na plenitude. Não há escolha nesse sentido, pois Judaísmo é o nosso modo de viver, o nosso Ethos e não alguma coisa em que devamos acreditar. Não podemos esperar o filho crescer para lhe perguntar se quer, ou não, ser filho, se nos quer, ou não, como pais. Mas, após o Bar Mitzvá ou Bat Mitzvá temos a liberdade e responsabilidade para escolher. Aos pais, cabe a responsabilidade de conduzir os filhos até a Bima, neste singular momento em que se tornam filho ou filha da Mitzvá!
Sarah, Rivká, Rahel e Leah, as queridas matriarcas, ensinaram seus filhos. Mirian ensinou o seu irmão Moshè durante boa parte da vida deste. Tziporá também ensinou Moshè (e era esposa dele!) e o que ela ensinou é referente ao Brit Milá de seu filho mais velho, aliás, o ensinamento de Tziporá livrou Moshè da morte, conforme narrativa da Torá, dentro daquela caverna onde se encontravam a caminho do Egito com um filho incircunciso, como se seu filho fosse uma possessão egípcia, um servo egípcio.
Bem antes de Moshè nascer, as parteiras judias (hebreias) já determinavam a plenitude da vida nas crianças, livrando-as das mãos dos assassinos de Faraó. No caso de Moshè e Tziporá tudo indica que ela (e não ele) conhecia a Mitzvá da circuncisão. Aliás, Moshé conhecia pouca coisa sobre a tradição judaica (ou hebraica).
O ensinamento da Torá, nos dias de hoje, passa por um dogmatismo inexplicável. Eles, os homens que se arrogam o posto de Mestres, ensinam a Torá no campo formal, mas elas, as mulheres, no campo substancial da alma humana. Aqueles, a forma; estas, o conteúdo. É como Poiema e Poiesis ou, ainda, corpo e alma. A Torá é um grande Poema do qual as mulheres e os poetas puderam, ao longo dos séculos, compreender a Poesia. E, desde sempre, mas, principalmente à época das matriarcas, as mulheres tiveram um papel determinante. Quando, por exemplo, Ya’akov esteve em dificuldade diante de Laban, seu sogro, que o oprimia e descumpria os contratos de trabalho (ou arrendamento), não foi a inteligência de nosso patriarca, mas a ação centrada e efetiva, de Leah e Rahel, enfraquecendo Laban naquilo em ele se sentia forte – a idolatria! Elas compreenderam que sua energia era idolátrica, então, tiraram-lhe as estatuetas, fragilizando-o sobremaneira.
Morreu Rahel pouco tempo depois, em seu segundo parto. Mas, teve tempo, ainda, de indicar o nome de seu filho, Benoni, ou filho da minha dor. Mas, após seu desaparecimento, o patriarca Ya’akov, igualmente movido por um amor profundo e delicado por Rahel, trocou o nome da criança, para ser chamada de Benjamim, ou expressivamente, filho da minha mão direita. Na troca do nome da criança, Ya’akov deixou publicado o que sentia por sua esposa Rahel, e continuou amando-a de forma intensa, na pessoa de seu filho Benjamim e, também, na de outro filho, Yosef! No episódio da troca do nome do filho, de Benoni para Benjamim, uma maravilhosa declaração de amor por Rahel, mas, o amor deve andar com mãos dadas à sabedoria, caso contrário é como um formidável cavalo solto. Um amor que custou, ou ao menos, propiciou, a experiência de servidão no Egito.
A direção dada ao amor de Ya’akov foi perigosa. Pois, ele continuou amando Rahel, na pessoa de dois de seus filhos. Ninguém deveria amar uma mulher na pessoa dos filhos e, neste caso, seu amor de pai por Benjamim e Yosef confundiu-se com o amor de esposo por Rahel. Principalmente, em relação a Yosef, o filho mais velho (com Rahel), a quem passou a proteger e a presentear com mimos variados. As vistas ficaram nebulosas em relação ao filho Yosef, e o mesmo, jovem demais, aproveitou-se deste encantamento e fixação de seu pai por si, e provocava diuturnamente seus irmãos, fazendo lashon hará (língua para o mal) contra os mesmos, desfilando, de forma soberba, com a túnica recebida de seu pai como presente e, por isso mesmo, despertando ódios e mágoas profundas (desejo mimético) em seus irmãos. Conduta que acabou por definir seu destino e a desagregação, cujo resultado último foi mesmo a escravização ao sistema egípcio.
O excesso de vaidade leva à coisificação. Yosef, então, passou a ser visto, diante de seus irmãos, como uma coisa. E como coisa, foi vendido aos ismaelitas (mercadores do deserto) que, por sua vez, o vendeu a senhores proprietários no Egito, sendo condenado, por derradeiro, a ficar longe de seu pai. O patriarca Ya’akov sofreu duas vezes – a perda de Rahel e, depois, a notícia (ainda que falsa) da morte de Yosef. Foi sua dor durante dezessete anos, o tempo desperdiçado de possíveis relações construtivas com seu filho – e pela dor extrema, em relação aos outros onze filhos homens e uma filha. Tempo desperdiçado, mas necessário, para o amadurecimento de Ya’akov, de Yosef e de todos os seus irmãos.
Bom seria não houvesse a distância, pois em que pese os flagrantes processos de crescimento, é indiscutível, por outro lado, a falta da convivência.
Nosso patriarca Ytzchak tinha uma natureza pacata, um homem modesto. Não era um homem de guerra, ou de lutas, como foi Avraham, seu pai. Por isso mesmo, projetou em seu filho Esav (o caçador, homem de guerra) a maior atenção e amor, enquanto Ya’akov era um Ish Tam, ou seja, um homem de estudo. Mas, Esav (e não Ya’akov) era a sensação para seu pai, Ytzchak. Daí que outra mulher, maravilhosamente sábia, justa e ponderada, Rivká, esposa de Ytzchak e mãe de Esav e Ya’akov, decidiu-se favorecer este em detrimento daquele. Pois, enquanto Ya’akov dedicava-se aos estudos, sob orientação de Shem, o seu irmão Esav perdia-se em sua performance de caçador.
Esav tomou mulheres canaanitas idólatras, que prestavam cultos orgiásticos aos deuses daquela região. Um dos cultos dali foi referência ao estabelecimento de uma das Mitzvôt, a saber, não cozinhar carne no leite e não misturar leite e seus derivados com carne, e seus derivados, porque aquelas mulheres canaanitas, em face de seus estranhos cultos e orgias, cozinhavam a carne no leite e, depois, aspergia sobre as plantações. Alguns grupos, também sacrificavam seus filhos a Moloch, um dos deuses de Canaã, lançando-os ao fogo. Elas queimavam seus filhos, lançando sobre eles (ou com eles) o leite que tiravam de suas próprias mamas, objetivando alcançar favores divinos de renovação. Esta é uma das razões pelas quais se tornou uma proibição, tanto cozinhar a carne no leite, quanto a mistura de carne e leite (e seus respectivos derivados).
Esav, o filho de Ytzchak, participava desses cultos, ganhando o desprezo de sua mãe, a matriarca Rivká, ao ponto de dar a ela a legitimidade de envolver o marido em um teatro, cujo objetivo maior era a transferência da bênção (legal, de primogênito) de Esav para Ya’akov. O pai estava com os olhos meio enceguecidos em relação a Esav, pois havia uma relação de projeção – mas, não em relação à Rivká.
É um engano dizer que o pai tenha sido enganado, tanto pelo filho, quanto pela esposa. Não foi. O caminho da bênção sobre Esav seria desastroso. Ya’akov mereceu receber a bênção, ainda que lhe tenha custado o ódio do irmão e consequente fuga para outras regiões, onde conheceria a opressão e mercenarismo (de exploração) de seu sogro Laban. E ele, Laban, apesar de ser irmão de Rivká, herdou tudo o que não prestava de uma família abandonada, anos antes, por Avraham – ou seja, a idolatria, o mercenarismo e a leviandade. Por isso mesmo, enganou Ya’akov tanto quando pode, mas não muito, tendo em vista que este patriarca tinha determinados conhecimentos, frutos de uma chamada, então, Torá Oral, cujo aprendizado ele desenvolveu com Shem – melk tzdek (rei de justiça) com aplicação horizontal.
Do mesmo lugar saiu, anos antes, Lot com Avraham. Lot foi aquele mesmo que afrontou seu tio (quase pai), abandonando um processo de formação. Desceu para Sodoma, onde manteve residência e vida sociocultural e terminou seus dias, então em uma caverna, em prática de incesto! Na oportunidade em que afrontou Avraham, ele escolheu para si o vale do Jordão com seu verde e vigor visual, deixando para o patriarca o Negev, deserto acinzentado! E, neste sentido, cometeu algumas transgressões, sendo a primeira dela escolher qualquer coisa em flagrante desrespeito a seu tio e tutor. A segunda, não bastasse a arrogância, foi a de escolher, de forma iníqua, o melhor para si! Atitudes que apenas fizeram por definir seu destino ou, ainda, os desdobramentos sobre sua própria vida. Afinal, nossa vida é um constante entrelaçamento de situações causa-efeito.
A escolha de Lot já seria por si só uma afronta. Escolher o melhor para si fez com que perdesse todas as boas forças sobre sua cabeça. Refiro-me às energias boas que ficam sobre (e em torno) dos que praticam atos de bondade. Por isso mesmo, a situação de Lot em Sodoma foi apenas efeito de um estado de decadência que começou no exato momento em que ele vê aquele Vale do Jordão e, egoisticamente, deseja-o somente para si.
Daí que em Sodoma, Lot e sua família vão sendo, cada vez mais, parte de toda perversão e injustiças que por ali se praticavam, dando Sodoma como base da educação de suas filhas (não tem a ver com homossexualidade, mas com perversidade). Situação que só piorou com a chegada dos emissários da Escola de Shem, indevidamente tidos como “anjos” em uma concepção medieval e, também, mais moderna. Lembrando que, a concepção moderna de anjos, como “moradores do céu” é advinda da cultura persa, grega, romana e, para depois, da teologia católica e cristã, com maior ênfase entre adeptos do pentecostalismo e neopentecostalismo (em todas as suas facetas, inclusive, considerando aí os carismáticos)
Ao contrário, aqueles homens – e eram homens, tinham um profundo conhecimento de uma certa Torá Oral, por intermédio de Shem, de quem eram discípulos. Conhecimento profundo em todos os sentidos que, conforme os sábios, será ensinado novamente em uma futura (e, aparentemente remota) época em que Mashiach nascer!
Tempo de um conhecimento tal que levará o homem a redescobrir o caminho da árvore da vida. Tempo de Torá C’hayim (Instrução para Vida) em que, superada a árvore do aprofundamento do bem e do mal, o homem poderá desenvolver, finalmente, a imagem e semelhança com as forças da Criação, aspecto ainda em desenvolvimento.
O conhecimento, em face da Torá Oral, antecede em mais de um milênio, o conhecimento que os gregos tiveram. Para a ciência, que nasce com os pressocráticos, a descoberta dos elementos terra, água, fogo e ar constitui-se em quase tudo. Isso ocorre nos anos 600 a.e.c.. E este conhecimento já era dos judeus (ou hebreus, ou semitas), principalmente, no que se refere à Torá Escrita, com mil anos de antecipação.
Tais elementos da natureza, os quatro materiais, já estão nos primeiros textos de Bereshit (Gênesis): fogo, terra, água e ar! Mas, no nosso caso, aparece, ainda, um quinto elemento, que organiza o tempo/espaço, e os quatro elementos básicos. Elemento para organicidade. É a Ruach HaElohim – o elemento feminino da Criação! Ruach é como a Poiesis! A comum tradução para “o Espírito de D’us” acaba por tirar o conteúdo fundamental da Ruach HaElohim!
Fogo, Terra, Água e Ar, são os elementos organizados pela Ruach que lhes dá sentido integrativo e orgânico! E este elemento será representando pela Menorá (candelabro de sete velas), como objeto capaz de transmitir a ideia da Árvore Sefirótica – árvore da emanação do Eterno. E, por isso mesmo, é determinado que haja uma Menorá diante do Aron HaKodesh. A Torá, cujo lugar de repouso e guarda é mesmo o Aron HaKodesh, é o corpo, a forma, enquanto a Menorá expressa a Poiesis! Forma e conteúdo! Em função disso, a constituição do povo judeu é de caráter matriarcal, a fim de podermos obter mais e mais daquele elemento feminino que permeia a vida, desde a Criação, Éden e formação judaica.
Diferente dos gregos, e depois, dos romanos, bem como dos medievais até a atualidade, culturas em que o elemento feminino é desprezado com uma violência contra o processo de Criação que vai, de modo odioso e injustificado, concretizar-se no modus celibatário, expressão máxima da afronta ao próprio encontro amoroso que o Eterno determinou desde o início. O que não é celibato acaba sendo machismo e misoginia, facetas do mesmo desprezo ao feminino.
Aliás, o que realmente encontramos, é uma indicação para a vida e não para rezas!
Não é esta
a amada que anseio
porque nestes seios não há ternura
e não murmura esta boca o encanto
e as mãos desconhecem o acalanto;
não é esta a amada que procuro
a quem juro infinito amor pleno,
a quem, ao menos, dedico este verso
(a amada tem no peito o universo)
que esta despreza o riso do olhar
e despreza o céu, e a terra, e o mar…
(a amada é o mar, e o céu, e a terra)
que esta enterra com as mãos a poesia,
faz-se distante, faz-se estranha e fria…
a amada é poesia presente
na entranha
© Pietro Nardella-Dellova
(A MORTE DO POETA NOS PENHASCOS E OUTROS MONÓLOGOS. São Paulo: Editora Scortecci, 2009, pp 176 e segs.)